Se estamos em guerra, onde está o general?

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O secretário de Estado da Proteção Civil, Rui Rocha, faz o ponto da situação acompanhado pelo primeiro-ministro Luís Montenegro, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e a ministra Maria Lúcia Amaral.
O secretário de Estado da Proteção Civil, Rui Rocha, faz o ponto da situação acompanhado pelo primeiro-ministro Luís Montenegro, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e a ministra Maria Lúcia Amaral.FOTO: ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

Este é um combate do país, nós estamos em guerra e temos de vencer esta guerra.” As palavras do primeiro-ministro Luís Montenegro, perante os incêndios que voltaram a devastar o país, têm a força de uma imagem bélica. Mas, se estamos em guerra, a pergunta é inevitável: onde está o general?

Portugal continua a enfrentar os incêndios como um fenómeno extremo, mas sem um comando e controlo unificado à altura da ameaça. Os relatórios técnicos e as análises de especialistas já o salientaram no passado. O problema não está apenas nos meios - mesmo quando o dispositivo é o maior de sempre, com mais de 14 mil operacionais, 3162 viaturas e 72 meios aéreos em prontidão -, mas sim na ausência de uma cadeia de comando eficaz, nacional e centralizada.

Em 2024, uma equipa de peritos australianos - que tinha cá estado em 2022 e 2023 a observar a organização do combate aos incêndios - caiu em cheio nos gigantescos fogos de setembro desse ano. Eis as notas de alguém, com conhecimento de causa, depois de três anos: “Cada brigada voluntária de bombeiros é gerida pelo município local; por isso, foi relatado que o presidente da câmara ou o capitão local tem muita influência no controlo das operações de combate a incêndios. Esta situação resultará na implementação de prioridades estratégicas localizadas, em vez de nacionais, e constitui um desvio e uma quebra fundamentais dos princípios do Sistema de Gestão de Incidentes utilizado internacionalmente.”

O mesmo relatório é categórico ao afirmar que a solução passa por liderança forte e centralizada: “É necessária uma liderança forte, ao mais alto nível, para iniciar e implementar as mudanças significativas que são necessárias na gestão de incêndios em Portugal.” E deixa um aviso: “Portugal já dispõe de recursos consideráveis para o combate a incêndios (tanto terrestres, como aéreos), mas aumentar o foco no combate a incêndios não resolverá o problema. Nunca haverá bombeiros suficientes para combater grandes incêndios florestais/rurais, como os que ocorreram em setembro de 2024.”

As críticas externas encontram eco em avaliações internas. No relatório dos peritos nacionais sobre os incêndios de 2022, entre os quais o da Serra da Estrela, com contributos de militares destacados que entendem bem de cadeias de comando, lê-se sobre o combate a grandes fogos: “Não se identifica qual a clara e inequívoca atribuição de responsabilidades e prioridades de uso desses mesmos meios e capacidades; (…) quem analisa e apoia a tomada de decisão por parte do Comando Nacional de Emergência e Proteção Civil (…) não aparenta deter a iniciativa disciplinada de os propor.”

O mesmo texto nota ainda: “Em todo o sistema de combate - e de resto, também nas outras fases - existe alguma falta de disciplina e de responsabilização, no cumprimento das decisões, das ordens, das tarefas e das manobras planeadas. É necessário haver mais fiscalização e monitorização de todas as atividades, com estímulos positivos - mais do que com penalizações -, para motivar, reconhecer e premiar os bons desempenhos, para melhorar o sistema.”

Concluindo: “Embora se reconheça a necessidade de envolver mais meios humanos e materiais no Sistema, questiona-se a falta de especialização e complementaridade e critica-se a opção de multiplicar recursos em diferentes entidades, com a mesma finalidade, em alternativa a melhorar e reforçar o que já existe e se faz bem. Questiona-se o emprego de grande número de meios, por vezes com deficiente preparação ou liderança, no teatro de operações (TO). Nem sempre o número elevado de recursos no TO correspondeu a uma grande capacidade de combate. Foi referido que por vezes se preferia dispor de menos meios, mas mais bem preparados, motivados e comandados.”

Estas constatações foram sequer lidas pelos decisores políticos? Se estamos, de facto, em guerra, não bastam os operacionais heróicos na linha da frente. É no comando que se ganha ou se perde a batalha. E esta guerra tem muitas batalhas. Sem liderança unificada, sem clarificação de responsabilidades, sem uma estratégia nacional que se sobreponha a interesses locais, Portugal continuará condenado a arder, ano após ano, apesar de todos os planos e dispositivos.

Neste contexto, ganha peso a discussão sobre o papel das Forças Armadas. A Constituição da República prevê expressamente o seu emprego em missões de proteção civil. No apoio logístico - desde o transporte pesado até ao abastecimento de refeições e à engenharia de campo - poderiam constituir um reforço de grande escala e permanente, ainda que complementar. No entanto, esse potencial continua pouco explorado.

O presidente da Liga de Bombeiros Portugueses, António Nunes, também já veio dizer que “falta um rosto, como em qualquer guerra, que diga, para o bem ou para o mal, as decisões que são tomadas sistematicamente, a nível nacional”.

Esse “rosto”, teoricamente, numa situação normal, seria o do presidente da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, José Manuel Moura, cuja presença não foi ainda notada. Da ministra da Administração Interna, Maria Lúcia Amaral, a sua ausência até pode ser mais profícua.

Já não estamos numa situação normal. Numa altura em que a área ardida já ultrapassou, em muito, a de 2017 e recordando que nesse ano boa parte das vítimas mortais foi em outubro, tal como os piores momentos do ano passado foram em setembro, é preciso reverter este bloqueio, ultrapassando interesses locais e corporativos.

Convém recordar que quando ocorreram os tumultos em Lisboa, após a morte de Odair Moniz, o primeiro-ministro surgiu em conferência de imprensa, em horário nobre, ladeado pelos chefes da PJ, da PSP, da GNR e pelas ministras da Administração Interna e da Justiça. Não seria tempo de fazer o mesmo? Com os respetivos atores, perante a verdadeira guerra que são os incêndios rurais? Mostrar os rostos de quem é responsável e pode contribuir para as soluções.

A pergunta mantém-se, cada vez mais urgente: se estamos em guerra, onde está o general?

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