Saudades de Cherburgo
O filme Os Chapéus de Chuva de Cherburgo (Les Parapluies de Cherbourg), obra-prima do cinema musical assinada por Jacques Demy (1931-1990), chegou às salas francesas há 60 anos - mais precisamente, no dia 19 de fevereiro de 1964. Cerca de três meses mais tarde, arrebataria a Palma de Ouro do Festival de Cannes, facto hoje em dia bizarro, uma vez que o certame da Côte d’Azur evoluiu no sentido de se fazer apenas com ante-estreias mundiais.
Neste caso, o prémio máximo do maior festival de cinema do mundo é uma memória frequentemente desvalorizada quando, de forma automática, se diz (mea culpa) que os cineastas da Nova Vaga francesa nunca venceram em Cannes… Ora, entre os que integraram esse movimento essencial na fundação do cinema moderno, algures entre o final dos Anos 50 e as convulsões de Maio de 68, Demy foi o único que conseguiu tal proeza.
Dito isto, importa acrescentar que o “esquecimento” de Demy como personalidade da Nova Vaga, ainda que historicamente errado, tem uma “explicação” a ter em conta. Em boa verdade, o seu gosto por ambiências melodramáticas contaminadas pelos artifícios do género musical colocava-o numa posição algo solitária, dir-se-ia “antiquada”, face às experiências que Jean-Luc Godard, Jacques Rivette ou Eric Rohmer iam desenvolvendo. Demy não deixou de ser um compagnon de route dos que transformaram a revista Cahiers du Cinéma na linha da frente do seu combate estético e político; ao mesmo tempo, desde a sua primeira longa-metragem, Lola (1961), com Anouk Aimée, foi também arquitetando um universo de serena e elaborada independência artística.
Com música de Michel Legrand, Os Chapéus de Chuva de Cherburgo obedece a uma lógica de construção que, ainda hoje, surpreende pelo seu arrojo - como se estivéssemos perante um objeto que, apesar da passagem dos anos, se distingue por um espírito “vanguardista” que a passagem do tempo não apagou. Afinal de contas, este é um musical que escapa às regras correntes do género ou, mais especificamente, aos modelos que esse género consagrou no interior da produção de Hollywood ao longo das décadas de 1930/40/50.
Assim, cruzando a herança dessa produção clássica com uma sensibilidade que nunca foi estranha ao jazz, Legrand (personalidade nem sempre devidamente citada e valorizada quando se analisam as dinâmicas interiores da Nova Vaga) construiu uma obra musical enraizada num feliz paradoxo: por um lado, Os Chapéus de Chuva de Cherburgo possui o fôlego de uma partitura “total”, dispensado a alternância entre cenas cantadas e cenas faladas - ou seja, todos os diálogos são cantados; ao mesmo tempo, por outro lado, em diversas situações o canto “oscila” para o puro recitativo, de alguma maneira integrando a enigmática “banalidade” das falas do quotidiano.
A odisseia romanesca do par interpretado por Catherine Deneuve e Nino Castelnuovo envolve, por isso, um conceito de representação dos atores que integra o realismo mais imediato, a par de uma teatralidade cujo limite simbólico será a monumentalidade da ópera. Ela, quase uma desconhecida, ficou a dever a este filme (e a Cannes) o estatuto nunca posto em causa de estrela da França e do cinema francês; ele, secundário talentoso e discreto da produção italiana, viria a ter um dos seus derradeiros papéis de cinema em O Paciente Inglês (1996), de Anthony Minghella.
Neste nosso tempo em que muitas componentes sociais, em particular televisivas, alimentam a noção pueril, não poucas vezes demagógica, segundo a qual os filmes se medem pela atualidade mediática dos seus “temas”, Os Chapéus de Chuva de Cherburgo continua a afirmar-se, 60 anos depois, como exemplo maior de um entendimento da arte como exercício de superação das aparências do mundo - e das regras consagradas do próprio cinema.
O tratamento de Cherburgo como cenário “teatral” decorre de um entendimento narrativo em que os sinais mais imediatos do quotidiano apelam a uma transcendência dos gestos e das ações da qual nasce o encantamento do cinema. Demy relançaria tudo isso no seu filme mais célebre - As Donzelas de Rochefort (1967), de novo com Deneuve, agora ao lado da sua irmã Françoise Dorléac -, reafirmando também esse gosto de transfiguração das cidades que acolhem as nossas utopias, tanto quanto as nossas desilusões.