A fotografia de Santiago Lyon continua a assombrar quem a vê. A 11 de junho de 1992, o então fotógrafo de guerra da agência Associated Press enviado a Sarajevo viu uma mulher caída no asfalto na infame Avenida dos Snipers, um conjunto de vias centrais que concentrava as miras dos atiradores furtivos sérvios instalados nas colinas em redor da cidade. Ao lado da mulher, um saco de compras e um sapato, enquanto alguns carros passavam a alta velocidade para não terem o mesmo destino. A imagem correu primeiras páginas em todo o mundo, tornando visível aquilo que muitos ainda não queriam acreditar: o cerco a Sarajevo, iniciado dois meses antes, estava a transformar uma capital europeia num matadouro a céu aberto.Foi assim durante 1425 dias, com ataques de snipers e fogo de morteiros a tornarem-se uma ameaça constante e diária para os civis bósnios. Mais de 50.000 pessoas ficaram feridas, cerca de 11 mil foram mortas, incluindo mais de 1500 crianças. Sinais com inscrições como Pazite, Snajper! ("Cuidado, Sniper!") tornaram-se comuns. A vida de cada habitante de Sarajevo estava sempre pendurada por um fio. Ir buscar pão, atravessar uma rua, brincar entre escombros, tudo era um risco de desfecho imprevisível. A Avenida dos Snipers não era uma metáfora, era mesmo um corredor de morte onde qualquer corpo podia cair sem aviso.Mais de três décadas depois, destapam-se agora novas camadas de horror, com a notícia de que promotores italianos iniciaram esta semana uma investigação sobre o que pode muito bem ser um dos factos mais obscuros e menos conhecidos daquele período: as suspeitas de que alguns estrangeiros terão pagado avultadas quantias (até cem mil euros) para ir em turismo de guerra até às proximidades de Sarajevo, onde vestiam a pele de snipers de fim de semana e matavam habitantes indefesos.As denúncias já tinham surgido esporadicamente no passado, mas esses fantasmas voltam agora com peso formal, depois de uma investigação de um jornalista italiano ter levado à abertura oficial de um inquérito pelas autoridades italianas.A simples ideia de que isto possa ser verdade é uma cruel evidência sobre o lado mais sombrio da condição humana. Para os sobreviventes e familiares das vítimas, a ideia de terem sido alvos de “turistas” aumenta o trauma e reabre feridas. Por eles, mas também por todos nós, hoje e amanhã, descobrir a verdade importa. Levar esta investigação até ao fim não é só justiça retroativa. É um aviso. Principalmente quando voltamos a assistir à normalização de discursos radicais, ao crescimento de grupos extremistas e a um clima que desvaloriza a vida do outro.Ora, o extremismo não cresce no vazio. Cresce onde as pessoas se habituam a ver o outro como descartável e indesejado. E basta um contexto certo para que o impensável se torne rotina. Sarajevo deve lembrar-nos as formas mais grotescas de uma desumanização que começa a germinar muito antes, na simples ideia de que algumas vidas valem menos.