Santos e pecadoras
Boaventura Sousa Santos foi entrevistado há dias pela CNN e disse várias coisas absurdas. Se uma mulher que, durante as décadas de 60 a 80, recebeu um piropo e nunca gostou, “é mentirosa ou hipócrita”; que as denunciantes de assédio parecem “vendedoras de trauma” e “parasitas” e justifica a proximidade com os alunos por ser latino: “Nós, latinos, não somos calvinistas, abraçamo-nos” (curiosamente, algumas das queixosas eram latinas, portanto, essa proximidade talvez fosse ainda mais excessiva do que o normal, não?). Porém, a mais espantosa declaração foi: as mulheres que são verdadeiras vítimas de assédio sexual não falam. Recordo o Relatório da Comissão Independente do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra que o visava: concluiu-se que houve padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores nessa instituição. Ou seja, reconheceram-se indícios de assédio sexual, embora tenha sido difícil assegurar a veracidade de todas as situações comunicadas. Mas algumas deverão ter sido confirmadas, para concluírem que houve abuso de facto.
As declarações do professor de 84 anos não provocam só repugnância pelo seu marialvismo bacoco e decadente de tom paternalista e superior; mostram também que não aprendeu nada com o que se passou. Não houve um gesto de arrependimento ou empatia para com quem se sentiu ultrajada e violentada na sua moral, ou outra. Alguém que foi, durante tantos anos, responsável máximo daquele centro, que tem um relatório de 114 páginas a concluir que houve abusos, e não faz uma única declaração sobre essa conclusão? É execrável. Pior: dizer que vítimas de violência não falam é um apelo a que as próximas se calem. É desacreditar as que tiveram coragem de falar. Seja em contexto universitário, seja noutro. Aos olhos de Boaventura, ele é um Santo, fazendo jus ao nome; as mulheres que se queixaram dele, umas pecadoras, que o usaram. Ele ali, à mão de semear, com alunas a sentarem-se ao seu colo e a colocarem a mão na sua perna. E ele queixou-se? Não. E um país assiste a isto e acha normal? O mesmo país que, há poucos dias, se deu conta de que uma miúda foi violada em Loures por três influencers e o vídeo desse acto abominável foi partilhado milhares de vezes, visionado outras tantas, e ninguém fez nada. Como se aquela miúda fosse um objecto a ser usado e feito para isso, ou como uma actriz num filme de violência. Só que não é um filme. É real. Para esta sociedade doente em que nos tornámos, permitir que um homem defenda que quem reclama não é verdadeiramente vítima é tão grave como visionar um acto criminoso e permanecer indiferente. Porque essa indiferença é, ela própria, outra violação.
Professora auxiliar da Universidade Autónoma de Lisboa e investigadora (do CIDEHUS).
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico