Flannery O’Connor (1925-1964) é uma das grandes escritoras norte-americanas do século XX, cujo centenário assinalamos. O seu estilo é marcadamente original, representando, enquanto natural dos Estados do sul, um sinal especial de dureza e sinceridade, perante a presença dogmática protestante dos seus conterrâneos. Lê-la constitui um desafio exigente quer pelo carácter complexo dos seus temas, quer pela construção narrativa e pelo sentido que atribui ao destino dos seus protagonistas. O seu catolicismo leva-a a confrontar a realidade e a Graça, os acontecimentos e o mistério. O que caracteriza o seu pensamento é a capacidade de encarar o mundo do avesso. A consciência do mal e o pecado tornam-se não apenas um sobressalto, mas uma descoberta da humanidade. Como Mauriac, Bernanos ou Graham Greene, a escritora sublinha as situações limite, percebendo o mundo imperfeito. Deus escreve direito por linhas tortas, lembrou-o Claudel no pórtico de Le Soulier de Satin. De facto, Flannery preocupa-se, antes de mais, com a observação, a especificidade, a credibilidade, a verdade, ou seja, com a não indiferença perante o mundo e os outros, não ignorando o que parece ser simples e superficial, porque tudo lhe permite compreender a essência da vida. Por isso, alguém disse que foi apenas uma contadora de histórias, tendo sido muito mais.Demarcando-se do “grotesco” sulista do “Bible Belt” e da ortodoxia luterana, dominados pela subalternidade, O’Connor vai assumir uma atitude inconformista, deixando nítido, como salienta Pedro Mexia no Prefácio a Um Diário de Preces, que “o ‘dogma’ cristão é uma hipótese possível sobre o ‘mistério’ da humanidade. De modo que quanto mais dogmático mais enigmático, ou seja mais verdadeiro”. Quando afirma que O Céu é dos violentos, sabe que “o amor deve ser pleno de fúria”, porque a guerra celestial propõe-se abandonar a sombra e procurar o sol. Cristo não traz a paz mas a espada, dizem os Evangelhos. E entre o amor dos seus pavões, as tarefas da quinta, os cuidados da doença incurável, a romancista lê S. Jerónimo e quantos a possam esclarecer sobre os mistérios da Graça.Afinal, os temas que talvez não fizessem sentido nos dias de hoje abrem os olhos. Em lugar da placidez da indiferença, importava a luta contra os paradoxos da vida. E que é a literatura senão essa marca inesperada que abre horizontes onde menos se espera? E compreende-se que a protagonista do conto Por que motivo se rebelam os pagãos procurasse na leitura a revelação do que a intrigava. “Não era raro (…) deparar-se com uma passagem estranha sublinhada num livro que o filho deixara aberto algures e ficar a cismar sobre ela dias a fio. Uma passagem que encontrara num livro por ele deixado no chão da casa de banho no andar de cima ficara-lhe sinistramente gravada no espírito”. Em Sangue Sábio, o seu primeiro romance (1952), um jovem, neto de um pregador ambulante, abandona a fé ao servir no exército durante a Segunda Guerra Mundial. Ao regressar ao Tennessee, compreende a força da transcendência na comunidade, mas decide combatê-la através da fundação da sua “Igreja Sem Cristo”… Eis o método de Flannery O’Connor: partir da contradição para chegar à essência das coisas, oferecendo-nos sempre o que nunca nos pode deixar indiferentes.Presidente do Conselho das Artes do Centro Nacional de Cultura