Sair de casa

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A vida é demasiado curta para podermos assistir a todos os festivais, lançamentos de livros, sessões de poesia, recitais de música que ocorrem nesta cidade de Lisboa e suas vizinhas, como Almada, Oeiras, Sintra ou Cascais. Além do mais, a nossa vida tem obrigações (“o ter deveres, que prolixa coisa” Fernando Pessoa), que nos roubam perversamente o nosso tempo.

Escrever é a mais solitária das atividades. “Ce jeu insensé d’écrire” escrevia já Mallarmé, esse fascinado pelas páginas em branco. Mas hoje abandono esse jogo e venho só pedir a atenção dos meus leitores para duas manifestações culturais a que tive a oportunidade e o grande prazer de assistir, pedindo desculpa a todas as outras a que a minha lamentável falta de ubiquidade me impediu de acudir.

A primeira foi a notável (faltam-nos adjetivos, hoje em dia; o século XIX era mais rico nessa matéria) exposição conjunta de Paula Rego e Adriana Varejão, no Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Gulbenkian. O diálogo entre as duas grandes (faltam mesmo os adjetivos...) pintoras criou uma mostra de obras impressivas e cruéis, onde a condição feminina e o sofrimento são glosados sem eufemismos nem reticências, mas postos à nossa frente em obras artísticas extraordinárias, que inteligentemente foram colocadas em diálogos distintos umas com as outras, e constituem, para além do mais, um verdadeiro e autêntico confronto luso-brasileiro.

A segunda experiência cultural que quero aqui referir é o exercício teatral em forma de monólogo, concebido e criado em cena por Gregório Duvivier, intitulado O Céu da Língua.

Neste tempo em que nos assusta o tremendo empobrecimento da nossa língua que está a acontecer, por via do digital e da sua utilização acrítica, nomeadamente no ensino, este tão divertido quanto culto discurso sobre a nossa língua portuguesa, nas suas variantes europeia e brasileira, constitui uma pedrada no charco da incultura e iliteracia que tem vindo a reduzir entre nós o português literário a uma espécie de fantasma ou estátua do comendador (ver na Wikipédia, por favor) a assombrar o nosso ensino.

Este monólogo cheio de humor e irreverência, mas com uma sólida base de conhecimento, vale mais para a defesa e afirmação da língua portuguesa do que muitos dos mais bem intencionados, mas ineficazes discursos.

Bom, cumprido este papel, que me dei e que ninguém me pediu, de guia cultural, vou aproveitar os carateres que me restam para me despedir dos meus leitores, usando uma citação roubada a Gregório Duvivier:

“A despedida não é dizer adeus, mas é a cerimónia do adeus. Só uma língua que inventou a saudade poderia ter inventado a despedida. Se a saudade é a presença de uma ausência, a despedida é o prenúncio dessa ausência. Nos despedimos porque sabemos que vamos sentir saudades e a despedida vai ajudar na saudade futura. Se despedir é tornar presente aquilo que não estará.

Por isso a gente gosta de se despedir. E passa a vida se despedindo. Tem a saída à francesa, que é sair sem se despedir, e a saída à brasileira, que é se despedir sem sair”.

Uma nota final: ao falar da língua portuguesa, não posso deixar de lamentar a perda de Fernando Venâncio, que tanto escreveu e trabalhou na defesa e divulgação da nossa língua. Uma perda para todos nós.

Diplomata e escritor

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