Edgar Morin tem 104 anos. Podia dizer que é um intelectual que testemunhou o último século, mas seria apenas meia verdade. O sociólogo francês, também filósofo e historiador, sobretudo um grande pensador, foi igualmente um ator desse século, desde logo porque em jovem pegou em armas e foi para o maquis combater o invasor alemão. Depois lutou através da escrita, como quando tomou partido por Mário Soares, velho amigo, durante o período revolucionário português: “quando houve a revolução dos Cravos e ele teve dificuldades porque houve uma tentativa comunista de se apoderar do poder, eu fiz um grande artigo para defender Mário Soares em França. Porque muitos em França diziam que os portugueses não precisavam de liberdade, precisavam de pão. E eu disse que se tem de ter pão e tem de se ter liberdade”.Morin, que chegou a ser comunista mas afastou-se revoltado com o estalinismo, contou-me esse episódio numa entrevista que lhe fiz, há dois anos. Veio então a Lisboa para a dar palestra “O Atlântico - A Nova Carta do Humanismo” e também para ser condecorado pelo presidente Marcelo Rebelo de Sousa com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Viajou com a mulher, a socióloga franco-marroquina Sabah Abouessalam. E com ele, no Palácio de Belém, e depois no auditório da Fundação Oriente, estiveram também dois amigos, Isabelle de Oliveira, professora na Universidade Sorbonne-Paris III e presidente do Instituto do Mundo Lusófono, e Manuel José Guerreiro, presidente da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Torres Vedras, que ainda há uns meses publicou no DN uma emotiva crónica com o título “O dia em que Edgar Morin me pediu para ser seu amigo”.Fiquei a saber, por essa crónica, o quanto Morin apreciou que lhe dessem a provar vinho Madeira e queijo de Serpa. Prova de como o grande pensador francês ama a vida. Quando se despediu, depois de participar numa cerimónia no Instituto Superior de Agronomia e dar a entrevista, disse-me que ia a uma casa de fados. Não precisam de fazer as contas: tinha nessa altura 102 anos.Estou a escrever sobre Morin, descendente de judeus sefarditas cujo verdadeiro apelido é Nahum, porque acaba de ser publicado em Portugal mais um livro, ‘Lições da História’. Está organizado em pequenos capítulos, cada um dedicado a uma lição, e é de leitura tão intensa como deliciosa. Deixo aqui o exemplo da primeira das lições: “o resultado de uma ação pode ser contrário à sua intenção inicial”. Conta que a aprendeu com Georges Lefebvre, professor de História da Revolução Francesa na Sorbonne, no seu primeiro ano na universidade, em 1940: “Para recuperar o poder perdido durante o reinado de Luís XIV, altura em que fora vassalizada, a aristocracia desencadeou o processo que levou à convocação dos Estados Gerais por parte de Luís XVI, sob a pressão de grandes dificuldades económicas. Até então, esta assembleia dos três estados sempre fora favorável à união da nobreza e do clero, em detrimento do Terceiro Estado. Ora, logo no início dos Estados Gerais, em maio de 1789, os deputados do Terceiro Estado conseguiram que os votos fossem contabilizados por cabeça e não por estado. Sendo os seus eleitores mais numerosos, no dia 17 de junho de 1789, o Terceiro Estado declarou-se Assembleia Nacional, e a Revolução pôde começar. A aristocracia perdeu, assim, o poder que esperava recuperar, e Luís XVI, por sua vez, ao querer uma reforma financeira, perdeu tudo”.Sabedoria centenária, um olhar de Edgar Morin para a História para percebermos o mundo em que vivemos. “Podemos aprender com o nosso passado?”Diretor adjunto do Diário de Notícias