Rui Teixeira Motta ‘as mãos’ – uma poesia outra

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Falo de um livro novo, de uma poesia outra, As Mãos (e. Guerra&Paz). Falo da poesia de Rui Teixeira Motta. Mergulha-nos este mundo de imagens lapidares num plano que é quase indizível, ou inominável, por isso poesia sóbria, austera, ainda que aberta a um certo espanto, a um quê de surpresa, como se nela ainda encontrássemos uma espécie de fascínio (ou de ingenuidade) propiciatória, em nós, leitores, de um mesmo nível de encanto, e às vezes de irónica indignação, perante a vida. Isto quer dizer – para ser claro – que raras vezes, na poesia portuguesa mais recente (digamos, os últimos 20 anos), encontraremos um autor, como é o caso do autor de As Mãos, onde a palavra de novo recupera – ou a si própria se resgata – dos maus usos, por demais poéticos, por demais da moda, por demais estéreis, por demais prosaicos, em que tanta obra pública e publicada (e elogiada! E tida por poética!) tem caído.

Rui Teixeira Motta publicou quatro recolhas (publicou no final da década de 1990 e, depois de um intervalo de mais de 20 anos, decidiu dedicar-se em exclusivo à escrita, publicando em 2021 e em 2023 ) e alcançou, num pequeno, mas sólido, grupo de leitores – que o lêem –, um lugar muito especial. Eu conto-me entre essas pessoas que, ao contactarem com os pequenos (grandes!) poemas do autor de Refracção (Gato Bravo, 2021), experimentam um certo deslumbramento em face de imagens, de raciocínios, de pormenores gerados por uma visão atenta que, estou certo, desarmariam o mais céptico ou cristalizado dos leitores. É que, como este conjunto de mais de 80 poemas comprova, a voz de Rui Teixeira Motta não tem, hoje, outra que se lhe iguale. Ninguém, no actual momento em que vivemos de poesia portuguesa, está escrevendo os poemas a um tempo simples e complexos (aquela “simplicidade complexa” com que Caeiro se autodefiniu e definiu o seu estilo) como é o caso destes que agora nos chegam na colecção de poesia da Guerra e Paz.

Simplicidade complexa, eis, de facto, o primeiro dos aspectos a considerar quando lemos – e tem de ser em voz alta em alguns casos e, quase sempre, em sotto voce – este poeta que arrasta para os seus textos uma dicção surpreendentemente pura. Essa pureza assente em versos de sintaxe simples não é sinónimo de ligeireza, mas sim de uma forma de estar na poesia como se procura estar na vida: cultivando gestos simples, construindo uma amenidade que reenvia a vozes clássicas, dialogando com certa poesia palatina. Um ou dois exemplos, para que se perceba: Quando a água escorre da cascata / não tem nenhum sentido. E este: Primavera / corpos novos / em folha.

Se escolho um poema com um dístico e uma quadra e, depois, um poema que é um haiku, isso prende-se com essa vontade de fazer do texto uma arquitectura métrica e uma morada forte de que os versos serão as colunas basilares. Versos por isso mesmo curtos, enxutos, onde a parcimónia do juízo sobre os homens é proporcional à delicada filigrana que, sob a aparência de facilidade, exige um labor íntimo. Por isso, há momentos neste As Mãos verdadeiramente originais, mas no duplo sentido da palavra: originais pela propriedade de certas imagens e metáforas de sentimento (na definição que lhe deu I. A. Richards, que separa metáforas de pensamento das de sentimento), mas originais porque a palavra de Rui Teixeira Motta demanda esse paraíso perdido de uma fala que pudesse, pelo simples facto de anunciar e de enunciar (anunciar futuros possíveis e enunciar verdades ocultas, pequenos sinais de vida num mundo votado ao império da morte), ser uma palavra virginal.

Uma sequência de haikus demonstra-o neste livro. Mas demonstra-o também um poema notável a vários níveis: na admissão da finitude, na abnegação dos trabalhos da vida serem os trabalhos da morte, na lúcida sagacidade – sem malícia nem revolta – de ler a existência como algo similar ao trabalho de lapidação do poema. O trabalho de viver é similar ao trabalho de polir, de engendrar, de cultivar – no terreno da cultura e no terreno dos dias que se sucedem – versos perenes: O trabalho de um velho /é árduo e infinito / falar não com a morte / ou com a vida / nem uma coisa nem outra / coisa nova / falar com o que já não somos / ao que não vamos ser / encostar o ouvido.

E se assim é, não se diz não à própria meditação sobre o que é fazer essa arte verbal, a poesia, cujo trabalho do verso é, afinal de contas, herdeiro da imagem do lavrar da charrua. Mudar de verso, pesar as sílabas e as palavras, encontrar a medida exacta para dizer o poema que dirá de uma visão de mundo, essa é uma raríssima conquista na poesia portuguesa actual, tão provincianamente americanizada, ou abrasileirada, tão ideologicamente comprometida com os ismos de uma acefalia global (do wokismo aos outros ismos que se querem políticos em arte e esquecem que a arte, para ser política, tem de ser arte primeiramente).

Estes poemas mostram bem em que perímetro a escrita de Rui Teixeira Motta se labora e de que modo esse labor não é virtuosismo (mas virtuose e virtude), redacção tensional e desejo de transparência, plano de visão, enfrentamento do escuro; poesia que se faz dentro de certos limites (métricos, estróficos, estilísticos) e sempre consciente de que as mãos da poesia são olhos que orientam o poeta (um cego, um aprendiz da vida, um peregrino) nas trevas. Alguma coisa do poeta tal qual é figurado pelo grande poeta chileno Óscar Hahn comparece aqui: o poema é o lugar onde “cabem os limites únicos / aquelas proporções inesperadas / quando as estrelas desaparecem / por excesso de luz na madrugada”. Rui Teixeira Motta: eis um poeta que urge ler, dar a ler (que esta poesia lê-se como quem vê).

De facto, esta não é uma poesia só de observação, ou da contemplação – é antes uma poesia que, ao contemplar, medita; ao meditar, propõe uma sageza, uma moral. Não será assim em todos os poemas, mas é, em muitos casos, uma poesia que sinaliza – ou faz pontaria e acerta sempre – um alvo para, centrando-se nesse alvo (o amor, o desencontro, o inesperado, a beleza, a recordação, o corpo, o sexo, as mãos…), operar sínteses prodigiosas, numa espécie de revelação que só é possível porque o Poeta espera as palavras. Ou melhor: espera pelas palavras, não lhes vai no encalço, antes espera, com a paciência de quem as recolhe nas suas “conchas puras” (Eugénio) para, depois, as moldar a uma natureza íntima de sentir o real circundante.

Em Rui Teixeira Motta, de facto, só vindo lentamente, a poesia fará sentido. A poesia, se pode irromper, como um flash, em momentos de grande atenção a um dado exterior ou em momentos de questionamento interior, ela é quase sempre o ofício de uma lentidão, uma recusa do movimento geral do não-pensamento e contra o qual Rui Teixeira Motta se insurge.

Poemas breves, portanto, como que a tornar nuclear uma impressão visual que se mescla com a reflexão intelectual sobre um processo – escrever – que é simultaneamente físico e transcendente: Na escrita / é preciso ligar / a derme à epiderme / como um nervo cosido à mão.

Em As Mãos – metonímia da escrita, metáfora do trabalho, imagem que reenvia para a invenção, a criação, o fazer dos instrumentos agrícolas, o labor oficinal, o encontro amoroso; mãos que são ternura, ou são “como punhais”, ou são sondas no amor ou satélites do corpo –, o que lemos é uma das mais artes de escrita que, em português, na poesia recente, se tem feito.

Professor, poeta e crítico literário

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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