Na semana que passou, além de um incidente doméstico na casa de Putin (problemas com o cozinheiro, parece), andou o mundo alarmado com a saga de um submarino ao largo da Terra Nova, com cinco homens a bordo, um dos quais bilionário, trirrecordista do Guinness e morador no Dubai. Houve logo quem lembrasse que, poucos dias antes, naufragara um navio em pleno Mediterrâneo, um mar aparentemente mais calmo e mais civilizado, e que nesse navio seguiam não cinco mas 350 seres humanos, dos quais apenas 104 sobreviveram. Disse-se, a esse propósito, que as televisões e as rádios deram muito mais relevo aos cinco infelizes do Titan do que aos 350 não menos infelizes de uma embarcação cujo nome nem sequer se sabe. Entrevistada pela BBC, Priyamvada Gopal, professora de Estudos Pós-Coloniais em Cambridge, veio explicar essa aberrante disparidade de tratamento: os tripulantes do Titan tinham um nome e um rosto, eram "heróis" potenciais ou reais, ao passo que dos migrantes do Mediterrâneo nada de nada se sabia, nem sequer o número de quantos morreram ou terão morrido na catástrofe. Por outro lado, a novela do Titan tinha os ingredientes todos de uma boa série de suspense, pois durante dias e horas havia a incerteza sobre se os viajantes se iriam salvar, ou não, ao passo que os paquistaneses, coitados, morreram sabe-se lá como e só foram notícia depois da tragédia acabada..Tudo isso é verdade, mais do que verdade, mas o que talvez menos se diga é que, enquanto bilionários a morrer não é uma coisa normal, não passa uma semana sem que morra gente, muita gente, nas águas do Mediterrâneo. Do ponto de vista noticioso, mediático, a morte de paquistaneses, indianos, bengalis é coisa tão corriqueira e banal que já nem desperta o interesse -- o dos media e também o nosso, note-se. Por aquelas paragens -- Índia, Paquistão, Bangladesh --, um desastre ferroviário só merece notícia, e ainda assim fugaz e curta, para cima de 100 ou mais mortos. Caso contrário, nem cá chega..Por isso, e até por respeito pela morte humana -- a dos cinco tripulantes do Titan e a das centenas de paquistaneses do Mediterrâneo --, importaria não politizar as duas tragédias, tirar partido dos mortos, até porque há uma coisa que sempre tem de ser dita: a Europa autoflagela-se, e em parte bem, por não ajudar mais esta gente, como a humanidade e a moral justamente mandariam. Sendo isso mais do que óbvio -- e abjecto o nosso silêncio --, é também mais do que óbvio que esta massa imensa de gente está a fugir do tão falado "Sul global", uma entidade difusa que pretende afirmar-se como actor de primeiro plano na cena internacional, mas que, na sua cena doméstica, maltrata e espezinha os próprios cidadãos, a ponto de estes quererem escapar a todo o custo dos seus países de origem, mesmo correndo o risco de perecerem em águas mediterrâneas ou nas arriscadas travessias da Mancha. Em larga medida, o protagonismo que Lula, Modi, Erdogan e outros querem ter na frente externa destina-se a camuflar as misérias da frente doméstica: milhões e milhões na pobreza, desprezo pelos direitos do ser humano, crimes ambientais, poluição, desigualdades, fome. "Todo o mundo é um palco", na frase imortal de Shakespeare, e, na verdade, tanto há "espectáculo" na tragédia do Titan como na forma com que os dirigentes do "Sul global" pretendem apresentar-se, virginais e puros, nos fora deste planeta. Lula, que se propõe fazer a paz na Ucrânia, é incapaz de garantir a paz social em sua casa e, em matéria ambiental, desdisse já muito do que prometera em campanha: aguardemos os desenvolvimentos de três megaprojectos -- a perfuração de petróleo na foz do Amazonas, a hidroeléctrica de Belo Monte e a ferrovia de Ferrograo -- para sabermos se o presidente brasileiro estará mesmo ao lado dos índios e do planeta, como prometeu, ou se cederá aos interesses e aos grandes negócios. E, já que falamos de mortos em submarinos, importaria recordar aos que continuam a fazer o jogo de Putin, falando no "poder nazi" da Ucrânia (!), que, no ano 2000, Vladimir, esse humanista, esse pacifista, deixou morrer lentamente 118 compatriotas seus, os tripulantes do Kursk, depois de ter recusado durante quatro dias a fio as ofertas de ajuda feitas pela Noruega e pelo Reino Unido..A propósito do bilionário morto na Terra Nova -- e da cobertura que mereceu das televisões e dos jornais --, quase apetece lembrar o famoso diálogo, ao que parece inverídico, entre Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, com o primeiro a dizer, deslumbrado: "Os ricos são diferentes de nós", e o segundo a responder, ácido e cortante: "Sim, têm mais dinheiro.".Não vale a pena insistir no óbvio, que os super-ricos de hoje têm muito mais dinheiro do que nós, os comuns mortais, até porque nessa constatação vai muita coisa que preferimos deixar na penumbra. Por um lado, no nosso desprezo pelos ricos há muito de inveja pura e, se acaso enriquecêssemos também nós, por herança inesperada ou favor da lotaria, logo deixaríamos de clamar e bramar contra as injustiças do mundo e o poder dos milionários. Por outro lado, há muita cumplicidade nossa com o actual estado de coisas -- se acham um absurdo a riqueza de Musk, não comprem carros da Tesla, deixem de usar o Twitter. Será coerente denunciarmos o poder de Musk e continuarmos a fazer posts no Twitter, enchendo-lhe a conta bancária? Ou criticarmos Zuckerberg mas permanecermos no Facebook ou no Instagram? E brincarmos ao TikTok enquanto vituperamos a crueldade da China e os massacres de Tiananmen?.Olhando para os multibilionários da actualidade, talvez o que possa dizer-se é que, além de muitíssimo mais ricos do que os seus congéneres de outrora, têm todos menos graça. Elon Musk, Jeff Bezos, Bill Gates, Mark Zuckerberg são uma cambada de cinzentões comparados com os milionários do passado, aqueles que marcaram os anos dourados da Riviera Francesa. Pensemos na arte a bordo, por exemplo. Diz-se que Mohammed bin Salman (MBS), o tirano que duplicou o número de execuções na Arábia Saudita (até Março deste ano já tinham sido mortas 81 pessoas, um número que, pelos vistos, não tira o sono a Messi e a Ronaldo), diz-se que MBS, dizíamos, tem no seu iate um quadro de Leonardo da Vinci, Salvator Mundi (pintura que, como já aqui referimos -- "O estado da arte", DN, 16/1/2021 --, é muito provavelmente falsa, a ponto de MBS ter pressionado o Louvre para que este não dissesse a verdade e o poupasse à humilhação de, bimbo e inculto, ter pago 450 milhões por uma obra forjada). Também o xeque Mansour bin Zayed al-Nahyan, antigo dono do Manchester City (assistiu a dois jogos, não mais...) e vice-presidente dos Emirados Árabes Unidos, tem centenas de obras de arte a bordo do seu iate, o Topaz, orçado em 350 milhões de libras. E, de igual modo, John Lewis, o multimilionário do Tavistock Group, sediado nas Bahamas, tem no seu barco telas de assombração, como o Tryptich 1974-1977, de Francis Bacon, comprado em 2008 por mais de 26 milhões de libras. Pois bem: também Onassis levava muita arte, antiga e moderna, a bordo no seu iate Christina O. Por exemplo, telas de Winston Churchill, como uma que em 1961 lhe foi oferecida pelo antigo primeiro-ministro britânico, um convidado habitual do Christina. E outra, um fabuloso quadro de El Greco, que tem uma história curiosa, típica dos milionários de outrora: foi num sofá branco frente ao quadro de El Greco que Tina Niachos, a primeira mulher de Onassis, o apanhou em flagrante com Maria Callas, facto que precipitou um divórcio célebre e abriu caminho a um dos romances mais badalados do século..Foi a bordo do Christina, de resto, que Kennedy conheceu Churchill, outra história de encantar. Ao que parece, o jovem e ambicioso político americano sonhava conhecer o leão britânico, a lenda da 2.ª Guerra. Um dia, Kennedy e Jacqueline conseguiram o desejado convite de Onassis para um jantar no Christina. Jackie surgiu deslumbrante, bronzeada, num vestido branco, falando fluentemente francês com Churchill e com Onassis, enquanto John estava de smoking branco, com Winston a franzir o sobrolho à sua indumentária. No final da noite, Kennedy, desolado, desabafou com a mulher, disse-lhe que Churchill mal lhe dirigira palavra, ao que Jackie respondeu, cortante: "Acho que te confundiu com um criado." Foi também na Riviera que se processou um outro diálogo curioso, desta feita entre Kennedy e o cunhado, Michael Canfield, casado com uma irmã de Jackie. Michael: "Não percebo porque é que queres tanto ser presidente." Jack: "Bem, Mike, acho que é a única coisa que sei fazer.".É difícil, quase impossível, enumerarmos todas as histórias e todos os grandes nomes que passaram pela Riviera entre finais do século XIX e meados do século XX. Gente do dinheiro e da alta sociedade, da política e dos negócios, mas também figuras das letras e da cultura, sobretudo das artes plásticas. Praticamente não houve ninguém, incluindo Lenine, que, numa altura ou noutra, não tenha estado em Nice, em Cannes, em Antibes, nas terras limítrofes, como nos mostra um livro acabado de sair, óptima leitura de férias: Once Upon a Time World. The Dark and Sparkling Story of the French Riviera, de Jonathan Miles (Atlantic Books, 2023)..Não é exagero dizer-se, na verdade, que, por debaixo daquela aparência frívola de paraíso de milionários, a Riviera Francesa foi palco de muita História, de acontecimentos que marcaram o destino de milhões de seres humanos. Foi lá que os duques de Windsor se refugiaram após a histórica abdicação de Eduardo VIII, em Dezembro de 1936, e do seu casamento com Wallis Simpson, em Junho do ano seguinte, após a confirmação do segundo divórcio dela. Enquanto aguardava pelo casamento, com Wallis já a residir em França, Eduardo foi viver para a Áustria, para a casa de Eugéne e de Kitty de Rothschild, no Schloss Enzensfeld, perto de Viena. Se o diabo está nos detalhes, como dizem, alguns pormenores definem bem a desprezível personalidade do antigo monarca: enquanto esteve hospedado pelos Rothschild, Eduardo comportou-se de uma forma horrível, tratando os empregados da casa como se fossem seus, fazendo intermináveis chamadas internacionais para Wallis Simpson, de muitas centenas de libras, a pagar pelos seus anfitriões. E a canalhice suprema: quando os nazis começaram a perseguir os judeus da Áustria e Kitty e o marido, o barão Eugéne, decidiram partir para a América, Eduardo nem sequer desceu para se despedir deles ao pequeno-almoço....Já em França, os Windsor convidariam 300 pessoas para o seu casamento: apareceram 16. Churchill, que sempre os apoiou, faltaria à boda, mandando o filho Randolph em sua representação. Winston e os duques estariam juntos em inúmeros almoços e jantares na Riviera, com o futuro primeiro-ministro a notar uma cruel mudança de estatuto: uma vez deposto, Eduardo passou a ser obrigado a disputar o uso da palavra à mesa das refeições, coisa a que não estava habituado e que, claro, o deixava deveras incomodado. Na mansão que arrendaram em Cap Antibes, o Château de la Croë, os 33 empregados, todos loiros, fardavam imaculadamente de branco e eram instruídos para tratar Eduardo como se continuasse a ser rei. Outra ilustração do seu carácter: quando saiu às pressas de França, conduzindo o próprio carro, na iminência da chegada dos nazis (com os quais tinha, aliás, fundas e antigas simpatias), Eduardo nem se incomodou sequer com o seu fidelíssimo ajudante de campo, Fruity Metcalfe, que estivera com ele -- e inteiramente pro bono -- desde os tempos da abdicação, que fora seu padrinho no casamento com Wallis Simpson e que o duque vilmente deixou abandonado em terras de França à mercê dos alemães. Como ainda hoje dizem alguns dos seus biógrafos, Eduardo Windsor mostrou-se mais preocupado com o bem-estar dos seus terriers do que com a segurança do ajudante de campo, a quem ordenou que levasse os cães para o refúgio de La Croë sem dizer uma palavra sobre o que deveria fazer depois..Podemos pensar em tudo isto como mero gossip do mundo dos ricos, coisas do domínio do supérfluo e da petite histoire. São, porém, muito mais do que historietas. Foi ao sol da Riviera, em almoços e jantares, festas e cocktails, que Churchill cimentou a sua relação muito próxima com Aga Khan, de quem, antes sequer de ser primeiro-ministro, ia obtendo informações preciosas sobre a política na Europa e sobretudo no Oriente. Para o destino da 2.ª Guerra -- e depois, na questão da partição da Índia e da génese do Paquistão -- não foi indiferente o facto de o líder espiritual de milhões de seres humanos estar alinhado com os ingleses, de ter privado com a rainha Vitória, de considerar-se cidadão britânico de alma e coração. Como para o destino desses milhões de ismaelitas não foi indiferente a atribulada vida amorosa e sexual de Aly Khan, o qual, apesar do seu tumultuosíssimo casamento com Rita Hayworth (celebrado em Cannes, 1949), não deixou de ser designado embaixador do Paquistão nas Nações Unidas entre 1958 e 1960, onde fez, aliás, um belíssimo lugar, chegando à vice-presidência da Assembleia-Geral. Porém, os seus excessos de playboy, com epicentro nas costas da Riviera, levariam a que fosse preterido na sucessão de seu pai e, como é sabido, acabou por morrer na sequência de um aparatoso acidente em Suresnes, arredores de Paris. Antes de serem trasladados para a Síria, em 1972, os seus restos mortais repousaram, durante anos, no Château de l"Horizon, Côte d"Azur..Poderia fazer-se a história da Riviera apenas em torno deste Château de l"Horizon, uma propriedade lendária, construída em 1932 pela americana Maxine Elliott, antiga actriz, femme du monde e empresária teatral de sucesso que decidiu fixar-se no Sul de França, onde morreria durante a guerra, em Março de 1940. Sobre a história dessa casa há um livro apaixonante, que li há pouco, The Riviera Set. 1920-1960: the golden years of glamour and excesso, de Mary S. Lovell (Little Brown, 2016), onde se conta pari passu a construção de L"Horizon. Para a conceber, Maxine escolheu o arquitecto americano Barry Dierks, que já antes fizera maravilhas na Villa Mauresque, de Somerset Maugham, tornando-a irreconhecível, de impecável bom gosto..Descrita como "um palácio branco erguido nas águas", L"Horizon deslumbrava pelo arrojo modernista das suas linhas, pela dimensão descomunal da piscina, pela proximidade ao mar (Johnny Weissmuller/Tarzan surpreendia os outros convidados atirando-se de uma das janelas do primeiro piso em arrojado salto para o oceano). Nos tempos de Maxine Elliott, L"Horizon hospedou Winston Churchill, o hóspede dilecto, que aí completou a sua biografia do duque de Marlborough, e foi palco de encontros e conciliábulos entre ele, Lloyd George, os duques de Windsor e, diz-se, Anthony Eden, então MNE britânico, e os seus homólogos franceses e italianos. Nas festas organizadas por Maxine, um cortejo de celebridades, de Noël Coward a Greta Garbo, passando por Jack L. Warner ou Maurice Chevalier. Inúmeros, dezenas, casos de amor e de sexo, traições e infidelidades, dizendo-se mesmo que foi aí que Churchill terá mantido uma relação muito dúplice com a socialite e beldade Doris Castlerosse, nascida Doris Delevingne, tia-avó da actual e célebre modelo. Outros garantem que Churchill terá tido um caso, sim, mas com a sua anfitriã, Maxine Elliott, enquanto outros asseveram que tudo não passa de lenda, de resto sem interesse algum (no que talvez estejam certos). Depois da morte de Maxine, Aly Khan comprou o Château l"Horizon, o qual seria palco de tremendas cenas e épicas brigas conjugais entre o príncipe dos ismaelitas, um incorrigível mulherengo, e a actriz de Gilda, conhecida pelo seu mau génio..Começámos esta crónica com barcos no Mediterrâneo e, falando deles, uma outra história náutica, esta bem metafórica. No início de 1929, cansado do frio de Londres, o escritor Evelyn Waugh decidiu fazer um cruzeiro pelas águas tépidas da Costa Azul. Consigo levou, disse, "dois ou três livros solenes", entre os quais o famoso Declínio do Ocidente, de Oswald Spengler. Teve azar com o tempo, estava um gelo em Monte Carlo, e Waugh, sempre snobe, anotou no seu diário que "os ricos são tão rígidos na liturgia dos seus movimentos que vêm para Monte Carlo durante o Inverno apenas porque é isso que o calendário lhes manda". Enquanto Waugh, no conforto do convés, lia uma obra sobre a decadência do Ocidente, um terramoto abalava a Bolsa de Nova Iorque, deixando milhões na penúria. Depois, seguiu-se a guerra e, regressada a paz, a Riviera não mais foi a mesma: desapareceram os aristocratas britânicos, surgiram fortunas novas de todo o mundo, para uma nova fase de excessos ainda maiores, dos grandes playboys planetários -- Aly Khan, Porfirio Rubirosa, Gianni Agnelli --, das beldades do cinema, dos automóveis velozes. Anos depois, outras mudanças, radicais, profundíssimas, com a Riviera Francesa a ser o espelho e o reflexo dos novos poderes do mundo, dinheiro de outras paragens, sem charme nem qualquer graça..Em 1979, o rei Fahd, da Arábia Saudita, compraria o Château de l"Horizon aos herdeiros de Aly Khan. O fabuloso palácio, outrora uma casa de festa e de riso, está hoje silencioso, emudecido, sepulcral. O príncipe Abdullah, que herdou o trono do seu irmão Fahd, tem outra mansão em Cannes e pouco ou nada vai lá. Passam-se anos sem a casa ser aberta, raramente é frequentada pela família saudita, cuja chegada à região, muito discreta, é assinalada tão-só por um pormenor escabroso: o inusitado afluxo de prostitutas de luxo. A casa foi murada, esventrada, descaracterizada, convertida num horrível bunker. Fizeram obras ilegais, apropriando-se de terrenos e caminhos públicos, mas, sem problemas, no final pagaram a conta, oferecendo as famosas "compensações" ao município de Vallauris..Não longe, o Château de la Croë, a antiga casa dos Windsor, passaria para as mãos de Onassis, que a vendeu em 1957, após a sua mulher, Tina, atrás citada, o ter apanhado na cama com uma socialite francesa (ser flagrado no acto parece ter sido uma sina do armador grego...). Acabaria invadido e vandalizado por "ocupas" e depois comprado por um português ilustre, o cidadão Roman Abramovich, cujo processo de aquisição da nacionalidade lusitana permanece envolto em penumbra, pouco ou nada se sabendo sobre o inquérito há muito anunciado pelas nossas autoridades. Em Abril de 2004, Abramovich iniciou obras de restauro e remodelação profunda, que duraram quatro anos e custaram qualquer coisa como 30 milhões de euros. Mobiliário feito à medida, uma piscina de 15 metros na cobertura, vasto ginásio no subsolo, plantas do Mediterrâneo e da Califórnia. A propriedade, estimada em 120 milhões de dólares, foi apreendida pelas autoridades francesas na sequência da invasão da Ucrânia pela Rússia ou, como diriam alguns, da patriótica guerra de Moscovo contra o poder nazi de Kiev (a pergunta que se impunha: se Zelensky é nazi, Putin será o quê? Antifascista?)..Para os leitores eventualmente interessados, informa-se que, desde 16 de Junho, há uma propriedade à venda por bandas da Riviera. Fica em Cap d"Antibes, chama-se Château de la Garoupe. Foi construída em 1907 por Lord Aberconway e, além de uma escada com acesso directo à baía de La Garoupe, tem um parque imenso e frondoso, com roseirais a perder de vista, consecutivamente eleito o mais belo jardim da Côte d"Azur. La Garoupe foi visitada pelo duque de Connaught, filho da rainha Vitória, acabou arrendada à época por Cole Porter, serviu de cenário a festas em que estiveram Picasso, Hemingway, Zelda e F. Scott Fitzgerald, descritas nalguns livros deste último. Seria comprada por um dos oligarcas de Putin, Peter Berezovsky, e serviu-lhe de refúgio quando este caiu em desgraça e se refugiou no Ocidente, sempre no Ocidente. Berezovsky, como é sabido, apareceu misteriosamente morto na sua casa de Londres, com uma ligadura à volta do pescoço, coisas que acontecem com frequência aos que ousam enfrentar o Kremlin. O governo francês, que não é parvo, apreendeu a propriedade logo após a morte do oligarca, fazendo-o no contexto de uma investigação por branqueamento de capitais, que durou mais de 10 anos e que permitiu detectar os fluxos financeiros que levaram à compra de La Garoupe em 1996, por 8,4 milhões de euros, e, mais tarde, de um outro edifício adjacente, por 13,5 milhões de euros. Agora, está à venda, vejam-na: https://www.chateaudelagaroupe.com/..Árabes do petróleo, tiranos e homicidas, oligarcas russos com longos cadastros de sangue, assim está a Riviera, um reino de podridão. Sempre terá sido assim, em parte ou em larga medida, e também no passado houve crimes, muitos: lembremo-nos, por exemplo, de Basil Zaharoff, senhor de Monte Carlo, com fortuna feita no tráfico de armas, colossalmente rico graças aos mortos da Grande Guerra, imortalizado por Hergé em O Ídolo Roubado..Mas simplesmente, tristemente os ricos do antigamente parece terem mais graça. E, sem dúvida, deixaram mais, muito mais, histórias para contar do que os bilionários do presente, reclusos e opacos, sem charme ou pingo de humor. Até nisto regredimos, parece - e é pena..P. S. - Ao fim de precisamente cinco anos, esta coluna "Péssima Companhia" irá dar algum descanso aos leitores, finalmente. Na próxima semana, e nos próximos meses, uma nova rubrica, intitulada "Prova de Vida": ex-famosos, hoje esquecidos, gente desaparecida, outra em voluntário olvido, travessias do deserto, fugas para o Brasil. Todas as semanas nomes da política e do desporto, das artes e do espectáculo -- no fundo, retratos de Portugal..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.