Reviver o passado em Lisboa?
Há uma linha de estudos, que beneficiou do impulso de autores como Peter Burke e David Lowenthal (a quem devemos o clássico O Passado É Um País Estrangeiro) que, a certa altura, se acolheu sob a designação “usos do passado”. Preservar, replicar, adaptar, remover, restaurar, recortar, alterar, refazer, inventar o passado… são algumas das acções demoradamente analisadas. Também na actividade e no comentário político, tão interactivos como são hoje entre nós, deparamos por vezes com a convocação de factos distantes, sob riscos análogos aos estudados.
É o caso de um escrito recente em que Pedro Adão e Silva -- que foi dirigente do PS com Ferro Rodrigues e ministro com António Costa - parecia conferir peso à hipótese de Pedro Nuno Santos “repetir” Jorge Sampaio, candidatando-se à Câmara Municipal de Lisboa. A não ser assim, concluia, seria incompreensivelmente tarde e, até, “imperdoável”. A hipótese já está ultrapassada, por decisões entretanto conhecidas, mas o conteúdo da interpelação permanece. Recuemos, pois, 36 anos.
Havia, em 1989, Eleições Autárquicas com um pormenor relevante no calendário político: Legislativas 2 anos depois. A escolha do candidato do PS a Lisboa não estava a revelar-se fácil - até Vítor Constâncio já incluíra essa dificuldade nos fundamentos da sua resignação, no ano anterior.
Escreve Ferro Rodrigues que um grupo constituído por si, António Costa, J.M. Galvão Teles e Nuno Brederode decidiu então reunir-se com Sampaio e convencê-lo de que “ou avançava com um movimento audacioso ou estava liquidado” - são as suas palavras. Foi dessa reunião, segundo Ferro, que saiu a candidatura de Sampaio, originariamente associada a um projecto de aliança com toda a esquerda - isto numa altura em que já tinha sido aprovada pelos órgãos do PS a orientação de que não haveria alianças nessas Autárquicas e fora mesmo expressamente reprovada a solução preconizada.
Na reunião em que Sampaio anunciou esse propósito, com a surpresa a suscitar extensa adesão, houve também quem tivesse manifestado discordância e colocado objecções de fundo, a que, aliás, a imprensa da época deu expressão.
Como era prefigurável, tanto o nível da aposta do líder do PS na Câmara de Lisboa - em que derrotaria a candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa, à frente duma direita unida - como, obviamente, a própria aliança, teriam repercussão nos resultados do PS nas Legislativas de 91. Os 29% obtidos conduziriam, logo a seguir, à substituição de Sampaio por Guterres.
Se isolarmos a dimensão autárquica e o resultado alcançado em 89 - o longínquo ano da queda do Muro de Berlim -, avulta o movimento audacioso e o sucesso da fórmula eleitoral. Mas se considerarmos, em bloco, Autárquicas e Legislativas (89/91), o que ressaltará é o trânsito para um outro resultado que levou à opção do PS pela substituição do líder.
As mensagens políticas construídas com referência ao que aconteceu há mais de três décadas podem constituir exemplos de ambiguidade no recurso ao passado.
Jurista, antigo ministro.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.