Em boa hora a Academia das Ciências de Lisboa celebrou o centenário do nascimento da Professora Maria Helena da Rocha Pereira, classicista de mérito que foi uma referência nacional e internacional no estudo das civilizações grega e latina. Tive o gosto e a honra de privar com a sua personalidade fascinante, para quem o conhecimento deveria ser sempre cultivado, partilhado e aprofundado, em nome de uma humaníssima atitude que visava no essencial o respeito e a salvaguarda da universal dignidade da pessoa humana. Foi na Fundação Gulbenkian que a encontrei quer na extraordinária condução da publicação de obras dos autores clássicos, quer no júri dos prémios da Fundação, na companhia do também saudoso mestre Vítor Aguiar e Silva. Recordo essas tardes inesquecíveis em que o conhecimento se misturava naturalmente com o quotidiano, numa manifestação simples e sublime de puro saber. Maria Helena da Rocha Pereira era uma pessoa simples e generosa, que exprimia os seus pontos de vista com clareza e determinação, sempre disponível para ouvir todos os argumentos em sentido de autêntico diálogo, confrontando princípios e sentido prático, mas nunca transigindo no rigor do conhecimento.Fui testemunha do reconhecimento pelos maiores especialistas do mundo sobre o profundíssimo conhecimento que tinha dos vasos gregos, fruto de uma experiência longa de estudo, desde a sua presença na Universidade de Oxford, onde foi discípula de E. R. Dodds, Rudolf Pfeiffer, Fraenkel e John Beazley. Além do seu prestígio indiscutível nos estudos clássicos, o seu parecer sobre os vasos antigos fazia lei entre os maiores cultores da matéria, que a consultavam sobre os maiores problemas. Tive ainda a grande honra de receber de sua família a generosa doação dos direitos intelectuais à Fundação Gulbenkian, que considerava sua casa, com a Alma Mater coimbrã. A sua biografia constitui um exemplo único de determinação e de pioneirismo. Foi a primeira mulher membro da Academia das Ciências depois de Maria Amália Vaz de Carvalho e de Carolina Michaelis de Vasconcelos, como fora a primeira mulher professora catedrática na Universidade de Coimbra formada na instituição, já que Carolina proveio de formação alemã. Com a difusão digital gratuita das traduções clássicas de sua autoria, estas tornaram-se no Brasil, como já acontece em muitas Universidades onde se cultivam os estudos clássicos em língua portuguesa, um motivo de reconhecimento geral de uma excecional qualidade didática, pedagógica e científica por muitos estudantes, professores e investigadores. Essa preocupação mantém-se atual na mensagem da sua obra, centrada na ideia de recusar simplificações fáceis, o que obriga os estudiosos de hoje a prosseguir um exigente caminho de aprofundamento. Ao falar de regresso aos clássicos, refiro a necessidade de valorizar tais raízes. Por isso, como tem defendido Frederico Lourenço, devemos dar importância acrescida ao estudo do latim e do grego, para melhor compreendermos que o estudo das línguas é um fator de cultura e de vitalidade criadora.Lembro ainda que na última semana ocorreu em França a entrada solene no Panteão de Robert Badinter defensor intransigente dos direitos fundamentais, que aboliu no seu país a pena de morte, no que Portugal foi pioneiro, sob o elogio de Vítor Hugo. Conheci-o bem, foi meu companheiro de lugar na Convenção Europeia. É exemplo inolvidável do humanismo moderno com fortes raízes clássicas.Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian