Reformar com “ARTE” ou repetir os velhos erros?

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O Governo anunciou na passada quinta feira o arranque da tão prometida Reforma do Estado, com a transformação da Agência para a Modernização Administrativa (AMA) em ARTE – Agência para a Reforma Tecnológica do Estado. Uma mudança simbólica e institucional, acompanhada pela criação da nova figura do CTO do Estado (Chief Technology Officer), que terá como missão liderar transversalmente a transformação digital da Administração Pública.

Na teoria, trata-se de responder a um problema estrutural, que tem sido a fragmentação tecnológica do Estado e a ineficiência dos atuais processos digitais. O novo CTO deverá garantir a interoperabilidade entre sistemas, implementar o princípio legal do “só uma vez” e romper com o labirinto de redundâncias e descoordenação que caracteriza hoje o relacionamento entre os serviços públicos e os cidadãos.

Para além da arquitetura institucional, o maior desafio de curto prazo está em preservar o interesse público e assegurar que os eventos de vida dos cidadãos e dos agentes económicos são tratados com eficácia, fluidez e justiça, sem a contaminação dos centros de interesse que há décadas colonizam o Estado por fora e por dentro.

É fácil falar em “interoperabilidade”, mas é difícil concretizá-la num sistema em que muitos fornecedores privados se habituaram a ver os departamentos públicos como meros clientes a colonizar. Onde os sistemas são pensados à medida de contratos e não de políticas. E onde a informação circula mal porque as decisões não são feitas em função de uma visão global de Estado, mas de lógicas setoriais ou orçamentais. Não faltam leis nem soluções técnicas, falta autoridade pública e liderança estratégica.

A anterior AMA nunca teve tanto poder legal como nos últimos anos e paradoxalmente nunca teve tão pouca autoridade real. Em vez de se afirmar como estrutura coordenadora, tornou-se uma entidade centrada no seu próprio prestígio institucional, com o foco nos seus próprios projetos de visibilidade fácil, perdendo a capacidade de mobilizar os organismos onde a mudança realmente precisa de acontecer.

O risco da nova ARTE é cair na mesma armadilha de parecer inovadora sem o ser, decretar reformas sem transformações e dar continuidade à velha lógica de reformas feitas dentro dos gabinetes com a ajuda de reinventores da roda. Não duvidamos das boas intenções do novo ministro, mas tememos pelas armadilhas e pelos abutres que o rodeiam.

Sem visão estratégica, esta reforma pode transformar-se apenas numa redistribuição de poder e contratos com nova roupagem institucional. Se os mecanismos de contratação pública continuarem opacos, se a relação com os organismos continuar vertical e coerciva, se a sociedade civil continuar ausente, não haverá reforma real. Apenas mais uma camada de discurso sobre estruturas que continuam a não se ouvir nem a colaborar.

É preciso empatia institucional, escuta ativa e capacidade de liderança partilhada. É urgente incluir entidades independentes, como a Rede Nacional de Administração Aberta (RNAA), universidades, profissionais e cidadãos informados na construção desta transformação. Não se trata de pedir opiniões e aplausos em audições formais e protocolares, trata-se de cocriar soluções inovadoras com quem conhece o terreno e ouvindo pessoas ousadas, insatisfeitas e mesmo “desobedientes”.

A modernização do Estado não é apenas uma questão de software, mas sim de cultura, ética e governação. A transição da AMA para a ARTE só fará sentido se vier acompanhada de uma mudança profunda de práticas, de centralismo para coordenação, de imposição para colaboração e de fragmentação para uma visão sistémica. Se não for assim, será apenas mais uma peça decorativa num Estado já habituado a reformas que mudam tudo para que fique tudo na mesma.

Especialista em governação eletrónica

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