“Refomar o Estado”: A tentação da cosmética

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O Governo anunciou esta semana o primeiro pacote da chamada “reforma do Estado”. O termo em si já me causa desconforto. Sugere, quase automaticamente, a ideia de um Estado generalizadamente gordo, burocrático e mal-gerido - uma caricatura que, embora possa aplicar-se pontualmente, está longe de ser justa como diagnóstico geral.

Portugal tem, aliás, menos funcionários públicos, proporcionalmente, do que países como Dinamarca ou Países Baixos. Há áreas que com certeza exigem ajustes, para mais ou para menos recursos, mas isso não justifica generalizações simplistas. Muitos serviços do Estado funcionam com qualidade exemplar - da Autoridade Tributária às Lojas do Cidadão - para não falar da administração local.

Convém também não esquecer que desde 2006, com o Programa Simplex, muitos procedimentos foram já simplificados e digitalizados. Portugal tem sido, aliás, reconhecido internacionalmente por essas iniciativas, e quem já lidou com administrações estrangeiras sabe que, em muitos aspetos, estamos na linha da frente.

Não me pronuncio hoje sobre todas as medidas agora anunciadas na Educação, por exigir um conhecimento profundo dos serviços. Reconheço que nesse pacote há ideias importantes, como a de integrar 300 bases de dados, o que espero permita evitar gafes como a que o Governo cometeu com a suposta redução drástica do número dos alunos sem professores. Também parece sensato devolver 500 professores às escolas, substituindo-os por profissionais administrativos.

Contudo, reformas anteriores como o PRACE (2006) e o PREMAC (2012) ensinaram-me a ser cautelosa. Fusões e reestruturações têm custos elevados e podem fragilizar os serviços por demasiado tempo, sem grande compensção nos resultados. A área da ciência, por exemplo, merece atenção especial. A dificuldade em transformar alguns dos resultados da investigação científica em inovação é real em Portugal e na Europa, mas não se resolve por milagre com a fusão da FCT e da ANI.

Mais preocupante é a tendência de mudar nomes sem alterar funções — como a transformação da Agência para a Modernização Administrativa (AMA) em Agência da Reforma Tecnológica do Estado (ARTE). Seria mais útil criar uma Agência para o Digital com um mandato mais alargado, incluindo sinergias com o setor privado, como a promoção da literacia em inteligência artificial, a gestão e utilização de dados públicos e privados, com maior interoperabilidade e regras éticas comuns. Até a figura do “Chief Technology Officer” (CTO), apresentada como novidade, pode pouco acrescentar às competências atribuídas ao presidente da AMA, que já desempenhava esse díficil papel, mesmo sem o título formal.

Resta esperar pelos resultados. Que sejam bons, é o que todos desejamos. Mas convém acompanhar com atenção e avaliar com independencia. Reformar o Estado exige mais do que cosmética e boas intenções. Exige conhecimento profundo, respeito pelos serviços e pelas pessoas que os fazem funcionar. E exige, acima de tudo, espírito crítico e memória das reformas passadas.

Ex-deputada ao Parlamento Europeu

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