A semana da terceira aprovação da eutanásia no Parlamento português foi verdadeiramente política. O líder do PSD, um antigo defensor do referendo que se olvidou de o fazer nos últimos meses, veio lembrá-lo à vigésima quinta hora. O presidente da Assembleia da República dispensou a ideia, não permitindo sequer que a iniciativa fosse levada a debate, apesar de tanto o Bloco, como o PAN - que são contra o referendo - terem sido favoráveis à sua discussão. O Chega, que propôs um referendo no verão passado, ainda que com a pergunta formulada de diferente maneira, tornou a peculiaridade generalizada, colocando-se ao lado de Augusto Santos Silva na rejeição do referendo agora proposto pelo PSD. O menos original - ou o único que não quis sê-lo - foi o Partido Socialista, acusando o PSD de ser "seguidista da extrema-direita", desta vez por pretender referendar a morte medicamente assistida..Independentemente da posição que se tenha sobre o tema, não se tratou de um espetáculo de elevação democrática..Parece-me claro, para começar pelo princípio, que Luís Montenegro deveria ter promovido a alternativa do referendo ao longo do seu meio ano de liderança, conhecendo-se a insistência do PS na legalização da eutanásia. Não só estaria em coerência com o seu posicionamento pessoal, como em respeito pelas deliberações instituídas pelos órgãos máximos do seu partido, por mais que o seu antecessor as tenha ignorado. Também me parece claro que Santos Silva, face à dissonância na Conferência de Líderes, às dúvidas entre constitucionalistas e aos precedentes já abertos nesta legislatura, errou ao travar a iniciativa dos sociais-democratas. Descartando qualquer conluio entre o presidente da Assembleia e André Ventura - possibilidade frequentemente desmentida naquele plenário -, Santos Silva deveria ter deixado os deputados que votaram a eutanásia votarem o referendo..Para o líder do PSD, que iniciou o seu mandato recusando referendar a regionalização ("Neste quadro crítico e delicado, seria uma irresponsabilidade"), nunca seriam dias simples. Luís Montenegro não podia parecer incoerente - recusar um referendo por instabilidade internacional e promover outro referendo na mesma instabilidade -, nem excessivamente tático. É que ele, ao contrário de Marcelo em 1997, defende um referendo sem verbalizar a sua posição nesse referendo - particularidade evidenciada por Pedro Passos Coelho no seu segundo texto contra a eutanásia..Há um ponto positivo para o PSD: o Chega repugnou o último travão à eutanásia, depois do Presidente e do TC, o que pode devolver eleitorado conservador a um PSD que precisa dele. Mas há também um ponto negativo para o PSD: se houvesse mesmo referendo, o "SIM" estaria essencialmente à esquerda e o "NÃO" previsivelmente com o Chega. Nem PS, nem PSD contêm unanimidades que impedissem essa polarização. E talvez seja essa a realidade mais esquecida neste enredo. Nem o primeiro-ministro, nem o líder da oposição apresentaram, na última década, pontos de vista consistentes, definitivos e suficientemente sufragados sobre a eutanásia. Em 2017, António Costa não sabia "se votaria a favor". Em 2018, disse que "ficaria muito mal ao governo intrometer-se num debate a ocorrer na Assembleia". Em 2020, estava certo de que não deveria "ser crime". Em 2022, ganhou maioria absoluta sem a eutanásia no programa eleitoral..Sinceramente, não coloco em causa as convicções do primeiro-ministro, e ainda menos as suas hesitações. São, afinal, as da maioria das pessoas. Não constando a abolição do referendo nas recentes propostas de revisão constitucional, para que serve ele se não para dissolver este tipo de dúvidas? Aos deputados que em breve votarão o seu recurso, recomendo que se perguntem: se referendássemos o referendo à eutanásia, os portugueses não escolheriam ser ouvidos?.Colunista