Radicalismo e moderação

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Se me perguntassem qual o objeto e o propósito deste pequeno texto, não sei que responderia. Não pretende impor, nem sequer defender, um ponto de vista sobre um qualquer assunto. Também não quer participar em nenhuma controvérsia. Só tem o título que tem porque precisava de um.

Talvez não seja mais do que um desabafo, reflexo de um mau estar obscuro e inexplicável. Bernardo Soares escreveu “doem-me a cabeça e o universo”. Sem ter a pretensão de partilhar tal dor, ou, sequer, de a compreender, também sinto doer alguma coisa, não fisicamente, mas nos ambientes que me envolvem. Qualquer coisa como uma “holistite” aguda!

O mundo, ou uma parte significativa dele, bem como dos seres humanos que o habitam, andam esquisitos. Estão mais intransigentes, menos adeptos da conversa e do consenso com os que pensam de maneira diferente, mais isolados e fechados, mais inclinados para soluções autoritárias – ou, mesmo, violentas – para os problemas individuais ou coletivos (porventura terão sido sempre mais ou menos assim e o que me falta é memória – ou talvez não).

A sensação que tenho, ao falar com amigos ou a ler o que se escreve nos jornais, é a de que se aproxima (se não a vivemos já), não o fim da história, mas uma modificação significativa – pelo menos à escala da minha vida – na forma como os seres humanos encaram as suas dificuldades. E as perspectivas pioram significativamente, se se substituirem os jornais pelas redes sociais, segundo ouço a alguns que nelas participam.

Li há dias num jornal a frase “beber vinho é dar cancro a muitos portugueses”. Era, aparentemente, um apelo que se pretendia irónico – inspirado numa mensagem comercial antiga que promovia o consumo de vinho –, expresso num português deficiente, que vai sendo habitual (o cancro não se dá, acontece). Bem vistas as coisas, seria, antes, uma intimação – melhor, uma intimidação – não para que se bebesse menos vinho, mas para para que se deixasse por completo o consumo da bebida.

Duas coisas me parecem certas: a primeira, cientificamente comprovada, é que o excesso do consumo de bebidas alcoólicas prejudica a saúde; a segunda, de que não existe evidência científica, é que o álcool, mesmo bebido com moderação, aumente significativamente o risco de cancro. Mas o que pretende o autor daquela frase não é reduzir o consumo de bebidas alcoólicas: é, simplesmente, proibi-lo. Mesmo que à custa de uma afirmação sem fundamento ou, até, intencionalmente falsa.

Há tempos atrás alguns jovens, ditos “ativistas”, envolveram-se em desacatos vários, berrando palavras de ordem mais ou menos abstrusas, entre elas a frase “acabem com os aviões”. Aparentemente, desejam o fim imediato – tudo quanto pretendem é, fatalmente, imediato – do transporte aéreo, culpado, sem direito a defesa nem julgamento, da degradação do ambiente, esse odiado pecado mortal, sem perdão, nem atenuante, admissíveis.

Estas posições extremadas e hostis a qualquer diálogo é que me merecem o epíteto de radicais. O radicalismo traduz-se na recusa sistemática da procura de soluções consensuais para os problemas. Os radicais sentem-se senhores da verdade e não aceitam transações, nem ponderações de interesses em conflito. A mais popular – e irritante – manifestação de radicalismo é a expressão “linhas vermelhas”. Imaginam as pessoas encerradas em quadrículas limitadas por linhas daquela cor, do lado de dentro os “bons”, do lado de fora os “maus”. Ou o contrário, o que para o caso é indiferente.

A moderação, pelo contrário, alimenta-se do diálogo, promove o consenso, satisfaz-se com o compromisso. O moderado tem as suas ideias próprias, claro, mas aceita que elas possam não ser as melhores. Está disposto a confrontá-las com as ideias de outros, assumindo disponibilidade para alterar as suas.

Os moderados admitem que os veículos eléctricos são o futuro, mas não julgam possível nem inteligente, enterrar já os motores de combustão. Os moderados não abusam das carnes vermelhas e dos alimentos ultraprocessados, mas não consideram sensato nem razoável impor o veganismo, privando-nos de um belo queijo ou interditando o presunto.

Enfim, o oxímoro: confesso-me um moderado, radicalmente moderado!

Antigo presidente do Tribunal Constitucional

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