Queremos mesmo mudar o hino de Portugal?

Veio recentemente a público um artista e músico português levantar a sua voz a favor de um hino de Portugal com menos armas e menos marchas e menos canhões para deixar aos nossos filhos um legado de paz. Penso ser esta a mensagem que, infelizmente, não ouvi no seu original, mas apenas consegui apanhar pelo que que li em alguns jornais. Legítimo.

Porém, este artista esquece vários aspetos essenciais.

O primeiro é que não há - salvo raríssimas exceções, dir-se-iam, até, doentias - quem não queira paz. Mas isso nada tem a ver com o hino nacional.

O segundo é que não há quem não queira deixar um legado menos bélico e menos hostil aos seus sucessores. Estaremos todos de acordo com isto e, mais uma vez, nada tem a ver com o nosso hino nacional.

O terceiro, e esse provavelmente diz pouco a muitos, é que Portugal é um país que vem de 1143. E um país antigo, com história, com memória, com raízes, cultura, tradições. Um país onde muito se pretende mudar para melhor, verdade. Mas onde só se pode mudar para melhor quando se visita a história e se percebem os erros cometidos, mas, também, as virtudes de tudo o que fizemos e construímos. A história e a memória não têm apenas coisas más como hoje muitos julgam. Como se apenas o presente fosse o céu e o passado apenas onde todos os males aconteceram. Um nonsense porquanto não tem futuro quem não tem memória.

Esquece-se que Portugal e a sua fundação, conquista e estabilização se fez sob os auspícios da guerra e numa incessante procura de consolidação de um território em paz. A guerra, presumimos todos, nunca foi o objetivo. A paz, sim. Mas a paz com prosperidade. A paz com futuro. A paz com competitividade. A paz com miscigenação. A paz com diversidade e inclusão. Essa paz teve e continua a ter um preço: educação, muita educação, saúde, justiça. É disso que se faz a paz hoje. E é "contra os canhões" da sua inexistência que hoje se marcha. Já não é a paz contra mouros, contra espanhóis, contra regimes, contra ditaduras. Felizmente. Mas é a paz que virá de uma marcha contra injustiças, desigualdades, falta de oportunidades, a paz por uma melhor saúde, a paz pela forte presença de condições de educação para todos. E isso faz-se pela guerra. A guerra contra os males presentes para almejarmos a paz futura.

Mudar o hino não muda uma vírgula no que fazemos e no que somos. Não nos traz mais paz. Não nos concede mais prosperidade. Não nos permite menos pobreza. Não nos irá assegurar, em nada, sermos mais competitivos e lutarmos por um Portugal mais global e com menos fronteiras. Preservando o que temos, mas globalizando. Recebendo e deixando partir. Harmonizando. Pacificando. E os legados, bom, os legados vêm dos exemplos que damos e não, nunca, das canções que remontam à nossa história. Seria, aliás, mais um dos muitos trabalhos de valor acrescentado zero (Portugal é, de resto, profícuo neles) - em que nunca mais chegaríamos a uma versão consensual - já que temos tanto que fazer que, mudar o hino nacional não será, seguramente, a nossa prioridade.

As guerras e os exercícios de guerra, a qualquer custo e por qualquer preço, continuarão sempre a existir. Veja-se a forma como facilmente uma nação foi abalroada, chacinada, ocupada e atacados alvos civis a pretexto de nada (Ucrânia). Veja-se como por causa de um sonho imperialista se pode facilmente chacinar e dar cabo da vida humana do próximo. Foi porque faltava um hino à paz? Não, claro que não. Foi pela natureza humana.

E não, não quero um Portugal fluffy, amorfo, que nem no hino seja capaz de combater e marchar. Que nem no hino seja capaz de relembrar o seu passado e a sua construção. Que nem no hino evoque, atualizando, os canhões contra quem apontamos quando estamos no desporto, quando evocamos Camões ou quando recordamos o período dos descobrimentos. OU os canhões que devemos apontar à falta de condições de saúde, à falta de educação, à falta de justiça, à falta de inclusão, à pobreza e às inúmeras assimetrias. Não, não podemos dar cabo de toda a história e de toda a memória.

Sim, contra os canhões marchar, marchar. Deixem-nos ser os heróis do mar. Deixe-nos navegar por entre as brumas da memória. Deixem-nos pela Pátria lutar. Contra os canhões, marchar, marchar!

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