Não sabemos como evoluirá a incursão ucraniana em solo russo. Mas há uma coisa que já sabemos: foi uma jogada admirável, de um enorme engenho e coragem, que entra diretamente para o topo dos acontecimentos mais surpreendentes de um ano internacional que já estava pleno de eventos inesperados..A imaginação é um elemento fundamental de uma boa estratégia..A Ucrânia, que no Mar Negro já tinha denotado essa capacidade de usar o elemento imaginativo para compensar a grande inferioridade de meios em relação ao inimigo, volta a exibir uma notável propensão para surpreender o inimigo..A “operação militar” ucraniana na região de Kursk (suprema ironia no termo, desta vez utilizado de forma correta) é, no mínimo, um virar de jogo de expectativas. Kiev ganha credibilidade em vários planos: do ponto de vista simbólico - os seus parceiros no Ocidente reforçam a noção de que vale a pena continuar a apoiá-la -, no plano operacional (limita ou até compromete futuras ações russas nos eixos Belgorod-Kharkiv e Kursk-Sumy), estratégico (obriga a Rússia a recorrer a unidades militares que se encontravam a proteger posições em territórios ocupados: na Crimeia, em Kherson, em Kharkiv e em Zaporíjia) e, sobretudo, reputacional: coloca a Rússia de Putin numa humilhação muito difícil de lidar..O Kremlin ficou sem reação durante dias. Sem saber, manifestamente, o que fazer perante tamanha surpresa em que foi apanhado. Uma primeira narrativa apontou para um delírio de inversão: acusar a Ucrânia de estar a entrar em território alheio (dava para rir, se não fosse trágico, perante o que sucedeu desde 24 de fevereiro de 2022)..Numa semana, a Ucrânia terá ocupado uma dimensão de território russo idêntica ao que a Rússia conquistou em solo ucraniano em cerca de um ano: 1000 quilómetros quadrados..Claro que com objetivos e propósitos bem diferentes: enquanto a Rússia está a tentar invadir (sem razão, legalidade ou o mínimo de moralidade) a Ucrânia, a Ucrânia está a penetrar em zona fronteiriça para minar a capacidade dos russos de prosseguirem e alargarem a sua ocupação ilegal da soberania territorial ucraniana..Depois do sucesso da contraofensiva do final do verão de 2022 (sobretudo em Kharkiv/Lugansk e, em menor grau, também em Kherson), com muito significativas porções de território recuperadas ao ocupante russo, os intentos ucranianos de 2023 não tiveram bom acolhimento..O fracasso da estratégia do ano passado levou à demissão do general Zaluzhny (hoje embaixador ucraniano em Londres) e consequente ascensão do general Sirsky..Depois de vários meses de “defensiva estratégica” - forçada pelo atraso de meio ano na ajuda militar americana, devido ao bloqueio republicano no Congresso, entretanto desbloqueado em abril -, a Ucrânia passou, finalmente, a ter possibilidade de projetar força e alguma esperança. O material recebido nos últimos meses e o desenho de uma incursão improvável nos termos, mas genial na conceção e posterior execução, tornaram possível aquilo que quase ninguém, sequer, suspeitava: depois de dois anos e meio a resistir heroicamente (com fases diferentes na capacidade, nos meios e na eficácia) à invasão russa, a Ucrânia foi capaz de se tornar o primeiro país a conseguir invadir território russo desde a II Guerra Mundial. Nunca um país não-nuclear havia conseguido fazer tal coisa a um país com capacidade nuclear - muito menos ao país que dispõe do maior número de ogivas nucleares no mundo..Como bem apontou, em título especialmente feliz, o Leonídio Paulo Ferreira em artigo no DN da passada quinta-feira, “isto de invadir a Rússia não é para todos”..Que fazer depois da perplexidade?.Passado um primeiro período de espanto e choque, o que é de admirar, até mesmo de causar estranheza, é que a Rússia demora em ter uma reação clara e assertiva sobre como lidar com a incursão humilhante..Putin parece estar a jogar com a perspetiva de que Kiev não terá grandes condições para prolongar muito mais - no tempo, mas também no espaço - tão ousada e arrojada decisão..Zelensky já fez saber que não pretende anexar território russo: “Ao contrário de outros, não precisamos de roubar propriedade privada, basta que não nos roubem a nossa.” Ok, mas então… até quando?.Os ucranianos reforçam que apenas têm objetivos militares (anular os alvos militares que, de Kursk, saem para atacar território ucraniano), mas também deram sinais, nos últimos dias, de estarem a preparar incursão longa e durável, ao criar gabinetes militares e corredores humanitários, na Região de Kursk..Manter um contingente relevante em território russo levará a um pau de dois bicos para a Ucrânia: como compensar a falta que essas unidades farão em solo ucraniano? Será que o saldo passará a ser francamente favorável, pela obrigação russa de deslocar as suas tropas de posições estratégicas na Ucrânia para fortalecer e defender Kursk, Belgorod ou Bryansk?.Estaremos, sem ter ainda bem a noção disso, a assistir a uma histórica viragem nesta guerra incomportável, capaz de fazer refrear planos russos para alargar a conquista de novas áreas na Ucrânia?.Um outro tipo de negociação.A Ucrânia corria o risco de, dentro de alguns meses, ser forçada a sentar-se à mesa de negociações numa posição de fragilidade..Em caso de eleição de Trump em novembro (não o cenário mais provável neste momento, mas uma percentagem de probabilidade perigosamente próxima dos 50%), Zelensky sabe que poderá ficar na situação de poder perder o apoio fundamental de Washington para manter um nível significativo de eficácia no campo de batalha..Ceder território ao inimigo a troco de continuar a ser ajudado por uma futura Administração Trump? Parece uma equação inaceitável - mas pode tornar-se numa realidade inevitável..Ora, esta incursão-surpresa em território russo faz a questão da cedência territorial conhecer outro tipo de contornos. A partir de agora, os russos também têm território a reconquistar ao inimigo..Sim: só o Donbass tem uma área 50 vezes maior do que a que a Ucrânia ocupou nos últimos dias em Kursk. Mas à mesa das negociações, essa gigante assimetria pode encurtar-se significativamente..O sucesso desta ação revelou, por parte da Ucrânia, um grande domínio da guerra de armas combinadas, com a utilização de defesa aérea, guerra eletrónica, drones sofisticados, para lá de blindados e infantaria Os ucranianos também parecem ter utilizado algumas das armas modernas fornecidas pelo Ocidente - como o Marder alemão e outros veículos blindados - de forma mais eficaz do que na ofensiva fracassada de 2023..Ainda devemos temer o pior?.Correrá a Ucrânia o risco de ver virado o feitiço contra o feiticeiro? Estará a Rússia a preparar uma vingança com contornos ainda piores para o povo, já martirizado, da Ucrânia? Não podemos excluir esse cenário - mas ele não se afigura provável neste momento..Moscovo está em dificuldades. Putin tem o governador de Belgorod, Viacheslav Gladkov, a pedir mais reforços militares e a admitir que a situação é “extremamente difícil e tensa”..Ora, isto não joga na habitual narrativa do Kremlin de que tem sempre a situação interna sob controlo..Mas os riscos estão também muito do lado ucraniano: as exigências de mais recursos humanos, equipamentos e logística para sustentar a incursão e manter o território conquistado serão significativas, sobretudo porque as linhas de abastecimento tenderão a estender-se.