Quando os ibéricos estão inspirados...

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Momento transcendental da nossa história”, disse ontem o embaixador espanhol em Lisboa, sobre a chegada de Cristóvão Colombo à América. Tem toda a razão, e só acrescento que não foi um momento transcendental apenas para Espanha - e por isso o Dia Nacional assinala esse 12 de outubro de 1492 -, mas sim para o mundo. Dizer que os vikings já tinham estado no Canadá ou que Colombo pensava ter chegado à Ásia é uma tentativa de desvalorizar o que tem enorme valor, um pouco como aqueles que estão sempre a sublinhar que na última etapa da descoberta do caminho marítimo para a Índia Vasco da Gama contou com um piloto  contratado no atual Quénia. Os feitos de espanhóis e portugueses para acabar com os velhos mitos sobre os oceanos e unir os continentes são indesmentíveis, mesmo que alguma historiografia anglo-saxónica ponha a globalização a nascer dois séculos depois, quando os ingleses (e os holandeses e os franceses) já disputavam aos ibéricos o predomínio que tinhamnos mares por terem sido os pioneiros.

Juan Fernández Trigo, que discursou uns minutos em português antes de passar ao espanhol, homenageou também ali no palácio de Palhavã os marinheiros e cartógrafos portugueses que contribuíram para as navegações espanholas. Mas não pensemos que falou só do passado, mesmo que inspirado pela celebração da data em que o genovês Colombo chegou ao outro lado do Atlântico ao serviço de Isabel, a Católica. Muito pelo contrário: realçou a extraordinária relação que souberam construir os dois países, que quase faz esquecer as rivalidades históricas, afinal há dois séculos que não guerreamos uns com os outros. Uma relação serena, construtiva, que beneficia espanhóis e portugueses e que, se tem arestas, estas bem poderão ser limadas já a 23 deste mês quando se realizar em Faro a cimeira luso-espanhola, a primeira de Luís Montenegro, com o primeiro-ministro português a ser anfitrião de Pedro Sánchez, o chefe do governo espanhol, agora no papel de veterano depois da partida de António Costa. “Água um bem comum” será o tema central das conversas agendadas no Algarve, a exigir diálogo, compreensão e cooperação no interesse de todos nós.

O papel que, em conjunto, os dois países ibéricos podem ter na definição do futuro da União Europeia foi o atualíssimo tema de uma intervenção de Durão Barroso há dias em Madrid, no evento Inspira Portugal, organizado pela embaixada portuguesa em Espanha. O antigo primeiro-ministro português e também antigo presidente da Comissão Europeia destacou a importância da cumplicidade ibérica para “uma Europa mais forte e sem complexos”. Que o atual dinamismo económico de Portugal e Espanha supere a média da Zona Euro é um incentivo para acreditar que a cooperação trará vantagens mútuas.

Numa entrevista hoje publicada no DN, o escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte elogia o 25 de Abril e sublinha que a Revolução Portuguesa de 1974 “ajudou a transição espanhola”, o processo político que aproveitou a morte do generalíssimo Francisco Franco em 1975 para pôr o país no caminho da democracia. Portugal redescobria então um destino europeu, perdido finalmente o império, um trauma muito mais tardio por cá do que em Espanha, que o sentiu em 1898. O destino dos dois países, finalmente democracias como era regra na Europa Ocidental, ainda se alinhou mais com a entrada em simultâneo na então CEE, em 1986. 

A conversa com Pérez-Reverte foi a propósito da edição portuguesa de Revolução, um livro sobre o México, o mais populoso país de língua espanhola e também uma das 20 maiores economias mundiais (tal como Espanha). Ora, se a ligação entre mexicanos e espanhóis é indesmentivelmente forte - na língua,  na cultura e também na economia -, e o mesmo se pode dizer em geral para a América Latina em relação a Espanha, ainda mais relevante é o seguinte: as exportações espanholas para Portugal são superiores à soma das exportações para as duas dezenas de países latino-americanos, uma informação que me foi um dia dada por Miguel Seco, presidente da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Espanhola, e que, confesso, me surpreendeu muito, mas testemunha a força da proximidade.

Disse ainda o embaixador espanhol, no discurso do Dia Nacional, que “os portugueses podem compreender melhor do que ninguém o que aconteceu naquele século XV a Espanha”. Sim, Espanha nunca mais foi a mesma, Portugal também se transformou com os Descobrimentos. Mas no Portugal e na Espanha do século XXI, a capacidade de nos entendermos para construir um futuro próspero para os dois países continua essencial, mais de meio milénio depois do Tratado de Tordesilhas e das extraordinárias viagens de Colombo, de Gama ou de Fernão de Magalhães, uma época de grande inspiração ibérica.

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