Quando o cinema vence a política

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Nos Óscares de 2013, Argo abalroou Zero Dark Thirty. As peripécias do agente da CIA Tony Mendez (interpretado por Ben Affleck) para libertar os norte-americanos feitos reféns durante a revolução iraniana de 1979 receberam sete estatuetas, incluindo a de Melhor Filme. Já a longa-metragem de Kathryn Bigelow, nomeada em cinco categorias, ficou-se por um singelo Óscar para Melhor Edição Sonora.

A polémica foi imediata. Affleck tem a versatilidade dramática de um manequim na montra de um pronto-a-vestir, mas a querela não foi sobre talento. As histórias verídicas que inspiraram estes filmes foram vítimas do contexto político.

Argo parecia uma alegoria da política externa dita criativa e benigna da Administração Obama, à época na Casa Branca, enquanto Zero Dark Thirty, que narra os interstícios da operação especial que eliminou Osama Bin Laden no Paquistão, seria uma ode à ‘Guerra contra o Terror’ inaugurada por George W. Bush, em particular ao uso de tortura como meio legítimo para obter informações.

Portanto, retratos de políticas externas diferentes. Talvez até de formas antagónicas de entender os Estados Unidos da América. O facto de Michelle Obama, primeira-dama em funções, ter anunciado o Óscar de Melhor Filme adensou a convicção de que a Academia subordinou os méritos artísticos à vontade política.

Espanha deparou-se agora com um caso semelhante. Antecipando melindres, os Prémios Goya - os ‘Óscares espanhóis’ - optaram por uma originalidade salomónica: atribuíram ex aequo o galardão de Melhor Filme a El 47, de Marcel Barrena, e a La Infiltrada, de Arantxa Echevarría.

El 47 conta a história real de um motorista de autocarro em Barcelona que, no período de construção da democracia, enfrentou os poderes recém-instalados para trazer alguma dignidade ao bairro de barracas onde vivia. A sinopse política é mais simples: Franco era mau, a transição democrática não foi exemplar e, sem o Partido Socialista, hoje boa parte do país viveria numa miséria alienante.

O outro vencedor, La Infiltrada, também baseado num caso verídico, recorda que, morto o ditador e edificada a democracia, perdurou em Espanha um projecto totalitário e terrorista imposto pela ETA. Milhares de democratas ameaçados e mais de 800 mortos - muitos por mero delito de opinião - às mãos da extrema-esquerda basca.

Pedro Sánchez viu o primeiro com agrado. Reflete as linhas programáticas da Lei da Memória Histórica, iniciativa socialista que dota o Estado de capacidade para definir uma versão oficial (e interessada) do passado, coisa que, ironia das ironias, Franco aplaudiria de pé se pudesse. Passado e presente unem-se num esquema de progressão linear, um trajecto feito de bons e maus, valentes e cobardes, acertos e erros, como num velho western.

Pelo contrário, revisitar a ETA destapa omissões gravosas e problemas pendentes. Há uma reconciliação social por fazer, impedida que está pelos herdeiros da organização terrorista, hoje apoios parlamentares vitais para Sánchez. E delata a hipocrisia de fazer de Franco - morto há 50 anos - uma ameaça constante, ao mesmo tempo que se tenta apagar da memória colectiva o terrorismo etarra, extinto apenas em 2018.

Na gala dos Goya, María Luisa Gutiérrez, produtora de La Inflitrada, dedicou o filme às vítimas do terrorismo, aos polícias, que arriscam a vida para defender os princípios da democracia, e à liberdade de expressão. A que cada um possa dizer o que pensa, no respeito pela divergência política. O poder ali sentado encolheu-se nas cadeiras. O discurso tornou-se viral, como agora se diz. E o cinema ganhou.

Politólogo.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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