Pudor e despudor coletivos: Harris e Trump na montra do tempo

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As próximas Eleições Presidenciais norte-americanas são, independentemente do seu resultado, um bom mostruário do mundo político do nosso tempo. A relevância global dos Estados Unidos, democracia referencial para boa parte do globo, assim o ditaria sempre, mas o perfil dos dois principais oponentes - e o seu significado coletivo - representa um padrão de liderança e de possibilidades cívicas para boa parte do Mundo Ocidental e não só.

A minoria de pessoas deste planeta que vive em democracias reais, mesmo com as suas limitações e dificuldades intrínsecas, tem a felicidade de poder escolher a sua liderança comum. Os modelos Kamala Harris e Donald Trump são um excelente exemplo do tipo de escolhas paradigmáticas deste tempo, que poderiam ser classificadas em termos de pudor-despudor. Não aqui o pudor estruturalmente íntimo e associado a uma vivência de moralidade, mas o pudor coletivo, ou a falta dele, aquele que pode levar a aceitar como bom na comunidade o que se recusaria em casa ou apenas para nós próprios.

Donald Trump é o filho de um construtor civil, feito na pegada do pai, que se gabava de não pagar impostos. Casado com uma ex-modelo estrangeira, mas envolvido com atrizes de filmes pornográficos, a quem pagou um mal-amanhado silêncio e, mesmo assim, o grande zelador da pureza branca das fronteiras norte-americanas e da moral dos mais estritos costumes. Trucidador de conselheiros e de conselhos avisados e capaz de mentir e de dizer a verdade com a mesma convicção, por aparente e momentâneo capricho ou por esperteza comercial, mais repentina ou mais produzida. Encarnando, portanto, as expectativas e os sonhos de um homem médio, que se pensaria impossível quando projetado para um discurso e uma decisão comuns, mas que existe, que nele vota e é capaz de o defender, de forma até irracional e criminosa, como se viu no episódio de ataque ao Capitólio. É, assim, a demonstração de um despudor coletivo, que vai para a rua legitimado como nunca nas últimas décadas, se torna opção política e assume o poder.

Kamala Harris é, de facto, basicamente o oposto. Nessa medida, estruturalmente conservadora, dentro das roturas que evidencia. Porque vem de uma construção de bom senso e de prudência na escolha política, porque sabe que a irracionalidade dos caprichos, dos apetites e da vaidade pessoal não é boa conselheira e tem, no exercício do poder, de ser continuamente limitada. O poder, na sua encarnação terrena, é algo que, por natureza, tem de ser controlado e autocontrolado. O poder é algo que exige pudor no seu manejo e contenção, mesmo que simultânea clareza, no modo como é projetado na vida dos demais.

Estes dois exemplos cimeiros de despudor e de pudor na liderança política são mimetizados na realidade política de outros espaços, em que o confronto cada vez mais replica a dimensão de aparência lúdica com que a vida se tem revestido, mesmo quando apenas para diluir novas escravaturas e novas dependências. A idealização do mundo torna-se conservadora, a loucura torna-se normal. O que não é nada de novo: mas pensou-se, a dado momento, que não voltaria.

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