Presidenciais: o eleitorado antissistema não chega para dois

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O negócio dos populistas é simplesmente viver da fadiga dos portugueses perante o sistema político. O método repete-se: apontar baterias contra as falhas do regime, ampliá-las até ao grotesco e, ironicamente, contribuir para o seu agravamento. Tudo isto sem nunca apresentar um pensamento estruturado, nem soluções minimamente credíveis para uma alternativa.

Partindo desta cartilha, o candidato presidencial Gouveia e Melo decidiu vestir a farda do herói antissistema, certo de que assim conquistaria um generoso pecúlio eleitoral. Nas suas próprias palavras, não é um “tribuno de fação”, mas sim o “único candidato independente”. Na sua presunção, os partidos são uma peste a evitar, o que equivaleria a decretar que Mário Soares, Jorge Sampaio, Cavaco Silva ou Marcelo Rebelo de Sousa jamais deveriam ter sido presidentes.

Durante algum tempo, as sondagens confirmaram que esta visão fraturante renderia dividendos. Entre os descontentes habituais, sobretudo os que votam no Chega, muitos não resistiram ao fascínio da farda e transferiram-lhe intenções de voto.

Numa mente moldada pela tropa, onde cada passo segue o guião sem desvios, parecia tudo controlado. Só que o irrequieto André Ventura tinha planos diferentes. Depois de umas legislativas inesperadas, que voltaram a dar fôlego ao Chega, o líder populista não poderia admitir que surgisse um outro comandante antissistema a disputar-lhe o monopólio. É certo que o Chega já é sistema, mas não no discurso. Dar palco a Gouveia e Melo seria implodir a narrativa e fazer nascer um novo paladino da refundação. Daí os sinais claros de que Ventura avançaria mesmo para Belém.

O alerta soou no quartel do ex-almirante. O lago onde pescava tranquilamente votos à cana passaria a ter um concorrente, ainda por cima especialista na pesca de arrasto, recolhendo indiscriminadamente todo o descontentamento disponível. Em desespero, Melo almoçou com Ventura. Nada se sabe do cardápio conversado, prometido ou acordado. Se fosse o independente que proclama, teria prestado esclarecimentos ao eleitorado. Como não o fez, resta supor que a sobremesa lhe soube amarga.

Sem chão seguro, Melo tenta agora agradar a todos. Afirma que já votou no PS e no PSD, numa piscadela de olho ao centrão. Mas esse espaço está reservado a quem tem currículo político e foi já ocupado.

Em suma, é oficial: Ventura será candidato presidencial e irá canibalizar o espaço que Melo julgava ter cimentado. Quando chegarem a campanha e os debates, assistiremos ao campeonato particular do populismo, com o veterano do Chega a esmagar o recruta que ousou entrar no mesmo ringue.

Com a passagem à segunda volta das presidenciais, Ventura mata dois coelhos de uma cajadada só: neutraliza o rival que ousou vestir a pele de herói antissistema e afirma-se como o líder partidário mais votado. Regressará assim ao parlamento com a mesma ambição de sempre: derrubar o governo, vencer as legislativas e conquistar o poder executivo. Resta saber se os portugueses estarão dispostos a conceder-lhe tal desígnio.

Professor catedrático

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