Preparar para acolher, cuidar para permanecer

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Em 2024, 118 crianças já confiadas à família ou para adoção voltaram para uma instituição de acolhimento. O termo é horrível, mas é o que é – são crianças devolvidas ao sistema de proteção.

Falamos de crianças que, depois de viverem o abandono, a negligência ou os maus-tratos, são novamente entregues às instituições — desta vez, por quem prometeu ser família. São crianças que viveram a esperança de um lar, de um colo, de uma pertença. E que, de repente, voltam a ser “casos”, “processos”, “números”.

A “devolução” de crianças durante o período de pré-adoção, ou mesmo após a adoção estar formalizada, é um fenómeno que nos obriga a parar e refletir. Não apenas sobre o sofrimento da criança, mas também sobre o que falhou no sistema, na preparação e no acompanhamento.

Não há adoção sem vínculo. E não há vínculo sem tempo, sem disponibilidade emocional, sem capacidade de lidar com o trauma que muitas destas crianças carregam. A adoção não é um ato de caridade, nem uma resposta a um desejo egoísta de parentalidade. É, acima de tudo, um compromisso profundo com a história, as feridas e as necessidades únicas de cada criança.

Por isso, é urgente olhar para os candidatos à adoção com mais profundidade. Não para os excluir, mas para os preparar. Para os ajudar a compreender que a criança que chega não é uma folha em branco. Que pode ter medo de amar, de confiar, de ser amada. Que pode testar limites, rejeitar afetos e repetir padrões que aprendeu em contextos de sofrimento.

Os candidatos à adoção precisam de:

· Formação especializada, que vá além dos aspetos legais e administrativos. Precisam de compreender o impacto do trauma, os desafios do vínculo, as reações esperadas e inesperadas.

· Acompanhamento psicológico contínuo, antes, durante e após o processo de adoção. Não apenas para a criança, mas também para os adultos que a acolhem.

· Redes de apoio, onde possam partilhar dúvidas, medos, conquistas e frustrações. Onde não se sintam sozinhos quando tudo parece desmoronar.

· Tempo e espaço para construir o vínculo, sem pressões externas, sem expectativas irreais, sem romantizações.

· Capacidade de escuta e flexibilidade emocional, para acolher a criança como ela é — e não como se idealizou que fosse.

A adoção é uma oportunidade de reconstrução, mas apenas o será se for feita com verdade, preparação e suporte. Devolver uma criança não é apenas um fracasso do projeto adotivo. É uma nova ferida aberta num coração que já conheceu demasiadas perdas.

Que possamos fazer melhor e proteger mais, porque é preciso preparar para acolher mas, também, cuidar para permanecer.

Psicóloga clínica e forense, terapeuta familiar e de casal

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