Políticas de Saúde 2024 (III): Serviço Nacional de Saúde das pessoas
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) não é uma organização como qualquer outra. Porque incorpora uma dimensão ética, a da inclusão, e outra afetiva, a da pertença - é nosso, património comum dos portugueses. Como alguém escreveu: “O SNS não é mais que a extensão da nossa cidadania e exprime uma genuína preocupação de uns pelos outros.” A sua evolução depende, entre outras coisas, do comportamento e capacidades daqueles que escolhemos para nos representarem. No Parlamento, no Governo, nas autarquias, nas organizações cívicas e profissionais.
1. Da legítima ambição à imperfeita execução... a longa marcha, universal, para o desenvolvimento dos Sistemas de Saúde.
Para que o SNS seja das pessoas, estas têm de reconhecer os seus êxitos e compreender as causas das suas imperfeições. Para que contribuam ativamente para a sua contínua superação. As limitações reconhecidas incluem aspetos circunstanciais, desde incompetências e conflitos vários até incidentes políticos diversos. Mas também realidades mais estruturais, como modelos de governação ultrapassados, limitações financeiras associadas ao grau de desenvolvimento económico do país, deficits enraizados de participação democrática e realidades internacionais desfavoráveis.
O Sistema de Saúde não paira, como uma ilha etérea, levitando acima do mundo real. É fantasiosa a ideia de que o SNS pode ser substituído, com proveito, por um qualquer “enxerto de Sistema de Saúde”, importado diretamente de um outro país, estruturalmente distante do nosso. O Sistema de Saúde de cada país resulta das especificidades da sua evolução histórica. Há que o aperfeiçoar contínua e persistentemente.
Não há enxertos milagrosos.
2. Importância da soberania de proximidade.
As “Unidades Locais de Saúde”, recentemente implementadas, não são, maioritariamente, unidades locais. São antes Administrações de Saúde, sub-regionais. Se lhes for concedida a necessária autonomia de decisão, que as Administrações Regionais nunca tiveram, esta pode ser uma reforma positiva - por levar decisões significativas para mais perto das pessoas.
Mas a soberania de proximidade decide-se “mais abaixo”, nas comunidades locais. Nos centros de saúde e nos hospitais que os apoiam. Nas unidades funcionais contratualizadas pelo seu desempenho, que se articulam entre si em função das necessidades das pessoas. Sensíveis ao que estas pensam e precisam, aprendendo continuamente com a experiência e seus resultados - elaborando “estratégias locais de Saúde” para a promoção da saúde da comunidade. Sem esquecer inquéritos sistemáticos sobre a satisfação dos utilizadores do SNS, como é já de uso em muitas outras organizações.
Aqui se situam os verdadeiros centros de gravidade de uma soberania de proximidade. Cabe às novas Administrações promover essa soberania local. Não a constranger.
Somar, não subtrair, nem apagar.
3. Informação de Saúde e cidadania.
Os Registos de Saúde Eletrónicos (RSE) foram prometidos há 17 anos. Preveem-se, agora, para daqui a um ano. Boa notícia. São dispositivos digitais que permitem às pessoas disporem da sua informação de saúde, seja qual for a sua origem, e disponibilizá-la aos seus cuidadores quando o desejarem fazer. Têm vantagens óbvias. No entanto, para contribuírem efetivamente para a centralidade das pessoas no Sistema de Saúde, este dispositivo digital não é suficiente. São indispensáveis “planos individuais de cuidados”, que promovam compromissos concretos - um “contrato” - entre as pessoas e os seus múltiplos cuidadores, negociados e continuamente avaliados quanto à realização dos objetivos acordados. Permitem a gestão inteligente e oportuna do percurso das pessoas através dos serviços de que necessitam, ajudando à integração dos cuidados. Requerem literacia em Saúde focada nas necessidades de cada pessoa. Convidam à ativação da lei relativa à Carta para a Participação Pública em Saúde, aprovada pela Assembleia da República em 2019 e esquecida até hoje.
O RSE, por si só, não chega.
4. Da necessidade de novos processos e instrumentos de governação que promovam a centralidade das pessoas.
No âmbito dos debates recentemente promovidos pela Fundação para a Saúde inclui-se a questão da governação e governança na Saúde. Da análise das dificuldades óbvias em promover as necessárias transformações no SNS, resultou a proposta de 10 princípios para a boa governação e governança na Saúde (já divulgados). Estes incluem, passar (a) da discussão dos recursos da Saúde para a dos resultados esperados com esses recursos, (b) da lógica do imediato para dispositivos de análise, planeamento e direção estratégica que antecipem o futuro, (c) da governação fragmentária, “dossier a dossier”, para respostas sistémicas que abarquem o conjunto das necessidades das pessoas, (d) da gestão hierárquica da informação para a promoção de uma inteligência distribuída e colaborativa...
Esta é uma reflexão essencial. Muito bem recebida por todos aqueles que têm participado no debate desta temática. Mas, desde há muito, ignorada pelo “sistema político” português. Até quando?
5. Dos riscos das limitações dos processos de governação.
Os factos subjacentes a notícias recentes, como “Novas regras atrasam a contratação de médicos”, afetam a efetividade do SNS - como explicado por líderes associativos, conhecedores do terreno: atrasos que aumentam o risco de os profissionais não ficarem no SNS; novas regras que obrigam os muitos profissionais destacados para os concursos a ficarem indisponíveis para a prestação de cuidados de saúde; candidatos insatisfeitos por não conhecerem exatamente o local onde ficariam colocados.
Tudo o que seria de evitar. Especialmente quando a prioridade é atrair profissionais para o SNS e melhorar o acesso aos cuidados de saúde.