Pode falar-se de “políticas de retorno humanistas”?
No decurso desta semana, o Conselho Nacional das Migrações foi ouvido sobre política de retorno do Governo. A ideia é centralizar na PSP a efetivação dos retornos em Portugal, mantendo a filosofia de que os mesmos devem ser “humanistas”.
Mas pode falar-se de políticas de retorno humanistas? Parece uma contradição nos seus próprios termos.
Bom, primeiro que tudo importa referir que abandonar estas medidas não é uma opção, por dois motivos. Primeiro, porque não depende de nós: a existência de uma política de retorno está, há muito, europeizada – é uma exigência da UE. Os Estados são obrigados a efetivar retornos de cidadãos em situação ilegal, a não ser que algum direito fundamental destes o impeça. Por outro lado, os retornos são um dos meios de coercibilidade do Direito da Imigração. Todos os alunos de Direito sabem que sem coercibilidade não se pode falar de normas jurídicas: as penas criminais ou coimas também restringem direitos, mas são necessárias para prevenir que cidadãos infrinjam a lei. No Direito da Imigração temos os retornos: regra geral, quem entrou ou permaneceu no território sem estar autorizado, deve regressar ao seu país. Se assim não for, de que serviria todo um complexo de normas destinado a regular quem entra e permanece no mesmo?
No entanto, tais retornos não são ilimitados, já que estamos a falar de devolver pessoas aos seus países de origem, e não de devolver coisas aos seus proprietários. Fala-se, por isso, de “humanismo”. Mas o que se deveria dizer era apenas “respeito pelos princípios do Estado de Direito”, pois não está em causa uma benevolência, mas normas que exigem procedimentos justos, direitos fundamentais, proporcionalidade, etc. Tal como num processo criminal, também nos retornos as pessoas têm de ser ouvidas; algumas não podem, pura e simplesmente ser retornadas; e o recurso à força e detenção devem ser usados apenas em último caso.
Tudo certo? Sim, na teoria. A prática tem demonstrado abusos neste domínio em vários Estados-Membros (detenções abusivas, uso da força, expulsões ilegítimas…). Ora, os retornos só são possíveis num Estado de Direito se não se falhar nesse ponto. Assim, se a centralização dos retornos na PSP pode trazer vantagens a nível de eficácia, ela irá impor uma exigente formação desta polícia no que toca ao complexo arsenal de direitos humanos em jogo na matéria de migrações.
Entretanto, de Bruxelas, voltam a chegar maus ventos. É anunciado um novo Regulamento de retornos europeu, e a perspetiva é tudo menos “humanista”: mais detenções, por mais tempo, e a invenção das chamadas “soluções inovadoras” à la Bruxelles: faz-se uma proposta, proclama-se (várias vezes) que a mesma respeita os direitos humanos, e depois dá-se um nome catchy às coisas mais duvidosas: por exemplo, Return Hubs!
Só que, obviamente, repetir em ladaínha que certas soluções respeitam direitos humanos não tem o condão de mudar a natureza das coisas. O que está em causa é a criação de plataformas fora do espaço europeu para onde se enviam, longe da vista, as pessoas a afastar. Os problemas que se colocam são muitos, e óbvios: por exemplo, como se monitorizarão abusos nos “hubs” localizados na Turquia ou Albânia? E que países serão considerados seguros para o efeito? E para quê criar normas sobre condições de detenção, se depois mandamos as pessoas para países que não estão vinculados a elas?
Vêm aí negociações difíceis e parece que Portugal tem estado isolado na oposição a estas “soluções inovadoras”. A ser aprovado este regulamento, o tal do “humanismo” poderá parecer cada vez uma palavra vazia, e quase ridícula, quando ligada à figura dos “retornos”.