O documento de 30 pontos que emergiu em novembro de 2025 nunca foi um plano de paz. Era uma operação de guerra psicológica, visando fraturar a coesão euro-atlântica. Apresentado sob a égide da futura administração Trump, com ecos de negociações informais entre figuras como Steven Witkoff e Kirill Dmitriev, o texto cristalizava a estratégia do Kremlin: obter por exaustão ocidental o que não conseguiu no terreno. Apesar da autoria inicial ter sido atribuída à futura Casa Branca, foi rapidamente desmentido.Na prática, configurava-se como uma capitulação ucraniana disfarçada: reconhecimento definitivo da anexação da Crimeia e do Donbass, referendos duvidosos em Kherson e Zaporíjia sob supervisão da ONU, renúncia permanente da Ucrânia à NATO e redução forçada do seu dispositivo militar, com proibição de armamento de longo alcance. Um detalhe crucial: Kiev não figurava como parte signatária. Um plano de paz sem a vítima é imposição.A resposta foi firme, mas calibrada. Zelensky e os líderes europeus rejeitaram o cerne da proposta sem hostilizar o Presidente Trump. O Presidente ucraniano evocou a sobrevivência nacional, lembrando que “nenhum povo negoceia a sua própria rendição”. Aliados europeus louvaram o “empenho na busca da paz” e sublinharam as poucas alíneas compatíveis com os interesses ucranianos. Nos bastidores, Ucrânia, Polónia, Estados bálticos, França e Reino Unido articularam uma contraproposta inequívoca – os seus pilares, incluindo garantias de segurança análogas ao Artigo 5 da NATO, foram confirmados nas conversações de Genebra – assente na restauração integral das fronteiras de 1991, retirada total das tropas russas, criação de um tribunal internacional para crimes de guerra e reparações financiadas por ativos russos congelados.Moscovo, previsivelmente, rejeitou liminarmente essa contraproposta, invocando as suas “novas realidades territoriais”. O impasse negocial está assegurado.O momento de maior tensão surgiu com a pressão inicial de Washington. O debate mundial girou 48 horas em torno da suposta “razoabilidade” do acordo que excluía a vítima. A onda de críticas, ainda que formalmente contida, obrigou a administração americana a um recuo tático notável. O Secretário de Estado, Marco Rubio, procurou validar este ajuste, afirmando que as conversações de Genebra tinham alcançado “enormes progressos” na integração da soberania ucraniana. A proposta, garantiram, “não representa a posição final”. O documento cumpriu o objetivo de semear a dúvida, mas a reação coletiva demonstrou a coesão.A verdadeira eficácia da manobra não reside nas negociações, mas na guerra de informação. À Rússia não interessa convencer; interessa prolongar a hesitação ocidental. Conta para isso com uma rede trans-ideológica que amplifica os seus argumentos: da extrema-direita (AfD, Rassemblement National, Fidesz) à esquerda radical (La France Insoumise, Die Linke, PCP). Esta convergência entre extremos revela a eficácia corrosiva da propaganda russa. Cada discussão sobre uma pretensa “paz razoável” é, em si, uma vitória estratégica do Kremlin.O caso da corrupção na companhia estatal ucraniana de geração de energia nuclear — ENERGOATOM – investigado e punido pelo próprio Estado em plena guerra – é explorado pela propaganda para acusar: “o Ocidente financia a corrupção”. Omite-se que essa transparência a quente é a prova mais eloquente da vitalidade democrática ucraniana. Na Rússia, a corrupção é abafada; na Ucrânia, é exposta e punida. Essa diferença é uma vitória democrática.Uma paz justa e duradoura só pode assentar na restauração plena da soberania e integridade territorial da Ucrânia. Outras soluções serão o corolário de um desgaste prolongado. Por ora, o Ocidente resistiu à armadilha e obrigou Moscovo a recolher a sua proposta tóxica. Resta saber por quanto tempo.Cada semana de hesitação é uma semana de avanço russo; cada concessão aparente, uma vitória estratégica. Resistir não é apenas uma escolha política; é a condição de sobrevivência da ordem euro-atlântica.Analista de Estratégia, Segurança e Defesa