Prometi a mim mesmo não criticar o governo até à sua tomada de posse. As considerações que a oposição fez sobre o dito confirmaram a prudência dessa promessa que, infelizmente, se tornou impossível cumprir. O PSD ataca o PS por ter possíveis "sucessores" de António Costa no executivo ‒ posição verdadeiramente curiosa, na medida em que as alternativas seriam (1) não ter militantes como ministros (coisa nunca vista em democracia) ou (2) não ter ministros com peso para virem a liderar o seu partido (coisa também nunca vista em democracia). Mais original, a Iniciativa Liberal desvalorizou os nomes de Costa por serem gente com a vida feita em Lisboa e/ou descendente de políticos. Para o Chega, naturalmente, são todos incompetentes e/ou corruptos..Não tendo nada mais interessante a acrescentar, planeava permanecer em silêncio até os socialistas terem oportunidade de fazer algum disparate. Na noite de sexta-feira, apercebi-me que tal já não seria apropriado. Na televisão, surgiu-me Pedro Adão e Silva, comentando futebol num canal desportivo 48 horas depois da presidência da República o dar como novo ministro da Cultura. Nada contra. Depois de blogger de propaganda governamental, cronista desportivo, comentador político, professor no ISCTE e comissário para as comemorações do cinquentenário do 25 de Abril, é evidente que aceitar a pasta cultural implica uma dose de sacrifício pessoal, que não merece desvalorização. Os políticos, em Portugal, ganham metade do que os comentadores políticos. Preferir uma coisa à outra requer uma certa dose de loucura e uns laivos de serviço público. O meu problema com Adão e Silva não é, portanto, a sua ida para o governo. O meu problema é com o modo como lida com a vida democrática..Quando criticado por ter sido unipessoalmente escolhido para coordenar as comemorações do 25 de Abril, considerou as opiniões alheias como "problemas da democracia em Portugal". Quando escrutinado pela imprensa por ter direito a um gabinete de ministro sem ser ministro ‒ secretária, motorista, assessores ‒ em plena crise económica, responsabilizou sentimentos "de inveja" pelas notícias que o davam como empresário ‒ para evitar o furto fiscal como trabalhador independente ‒ e sócio da sua mãe. Como é que a direita falha em apreciá-lo, sendo tão empenhado empreendedor e homem de família, é algo que me escapa..Ou escapava, vá, até dar conta das suas posições em relação ao 25 de Novembro. "As datas fraturantes não se celebram"; "devemos concentrar-nos em celebrar aquilo que nos une e não o que nos divide", entre outras. João Miguel Tavares assinou um artigo repugnando tais afirmações devido ao "atual contexto internacional" e à posição do PCP face à guerra na Ucrânia. Subscrevo, ainda que o meu ponto não seja esse. O que é "divisivo", contrariamente ao apregoado por Adão e Silva, não é lembrar o 25 de Novembro; é ignorar que ele aconteceu, que foi necessário..Com esperança que o recém-ministro não me tome como invejoso ou "um problema para a democracia", tenho de lhe dizer: claro que as datas fraturantes se celebram. Mais: claro que o 25 de Abril, tendo sido uma revolução e o berço de um novo regime, também é, em si, uma "data fraturante". Fora da bolha de Adão e Silva há, imagine-se, gente que celebra o 25 de Abril mas que rejeita o regime liberal que dele saiu e gente que não aceita o que sucedeu entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro mas que defende a democracia parlamentar que desde então se construiu..Para comentário futebolístico, claro, as nuances e zonas cinzentas não são a linguagem mais frequente. Para alguém que ficará a cargo de uma cultura com 900 anos de História, todavia, é imprescindível entendê-las. Sendo Adão e Silva um adepto de música, deixo-lhe a sugestão. Antes de olhar para um país tão diverso de forma tão uniforme, como canta Phil Collins, think twice.. Colunista