Perseguidos e manipulados pela tecnologia

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Conhecemos recentemente o feito científico em que Brad Smith, com esclerose lateral amiotrófica, voltou a comunicar-se novamente com o mundo graças a um implante cerebral da empresa Neuralink de Elon Musk. Não falou, não escreveu, não moveu um dedo, apenas pensou e o pensamento tornou-se texto, imagem e voz. O que parecia ficção científica tornou-se realidade. Mas por trás desta comoção, constata-se que os cyborgs já chegaram e os políticos continuam a dormir.

Esta não é apenas uma vitória da ciência médica. É um sinal claro de que a política já perdeu terreno na corrida decisiva do controlo da mente, do corpo e do comportamento. As interfaces cérebro-máquina deixaram de ser experiências de laboratório. Hoje curam, amanhã melhoram e depois controlam. 

As fronteiras estão a cair. O corpo humano já não é o último bastião da privacidade, pois o cérebro, que julgávamos inviolável, está a ser cartografado e a soberania sobre o pensamento tornou-se um desafio para os reguladores.

Acaba também de ser anunciado que em breve irá ser lançado o ImmigrationOS, um sistema encomendado por Donald Trump à Palantir do polémico Peter Thiel, para rastrear e deportar imigrantes com precisão algorítmica, com reconhecimento facial, dados biométricos, localização em tempo real e históricos pessoais, tudo fundido numa máquina de vigilância estatal, que se pode alastrar a outras democracias mais frágeis.

O que o implante de Musk faz por dentro, o ImmigrationOS de Thiel faz por fora. Um lê pensamentos e o outro persegue corpos. Ambos normalizam o controlo absoluto do ser humano.

Estamos perante uma mudança civilizacional, em que o mundo se divide entre perseguidos e manipulados. Uns tentam escapar ao olhar implacável dos algoritmos e outros aceitam ser "modificados" para sobreviver na nova ordem tecnológica. Mas no topo desta sociedade está uma elite tecno-oligárquica, com Musk, Thiel, Zuckerberg e outros a ditar as regras, a definir o que é possível e a cobrar a entrada para um novo futuro. A democracia observa calada e a política assiste desorientada.

Os dados cerebrais e os dados biométricos são agora o novo petróleo, embora com a diferença de que não são apenas recursos, são pessoas com pensamentos, emoções, intenções, origens e pertenças. E tudo pode ser transformado em produto, em critério de exclusão e em arma silenciosa. O ImmigrationOS mostra como a tecnologia pode servir para excluir e o implante da Neuralink mostra como se pode seduzir com promessas de transcendência. Em ambos os casos, o resultado é a concentração de poder sem escrutínio.

E o maior perigo não é a existência destas tecnologias. O maior perigo é o vazio político. A ausência de um quadro legal, ético e democrático capaz de lhes impor limites. Já falhámos com os dados pessoais e já chegámos tarde às redes sociais. Vamos agora repetir o erro com o cérebro humano? Com a vigilância comportamental em tempo real? Com a exclusão automatizada de pessoas em nome da eficiência?

Precisamos urgentemente de legislação sobre soberania mental, regulando o acesso a interfaces neuronais e proteger a dignidade humana. Trata-se de exigir que nenhum cidadão, nacional ou imigrante, seja deixado à mercê de sistemas que decidem sem transparência nem compaixão. 

Devemos defender que os imigrantes devem ser incluídos nos sistemas de cidadania e bem-estar do país onde escolheram viver e trabalhar e não para serem simplesmente expulsos por software. Devemos garantir que a tecnologia sirva a liberdade em vez de a substituir.

Brad Smith mostrou-nos que pensar pode ser suficiente para falar e agir, enquanto o ImmigrationOS nos mostra que pensar pode ser suficiente para ser perseguido. A tecnologia já começou a pensar por nós e onde estarão os políticos que são capazes de pensar por si?

Especialista em governação eletrónica

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