Perdoa-lhes que nós não

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Pode a máfia russa investigar o tráfico de mulheres? E os cartéis mexicanos poderão nomear comissões para investigar o narcotráfico? Não se trata, pelo contrário, de competência da polícia de investigação criminal? Os investigados escolhem os investigadores? E ainda lhes pagam? Que sentido faz? A igreja católica em Portugal vai então apurar décadas de abusos sexuais perpetrados na sua própria instituição e, claro, para isso seleccionou pessoas de bem, com prestígio, bons currículos e toda a credibilidade. Pois claro. Faria agora algum sentido o criminoso recrutar para investigar a sua própria casa gente sem mérito? A igreja escolhe e escolhe bem, paga-lhes e lava tudo. O orçamento será curto, a equipa reduzida e o prazo de um ano bem pequeno (tudo muito insuficiente quando comparado com França ou Austrália, por exemplo) mas se, no final, apenas se confessarem dois ou três peões do xadrez e se tudo souber a pouco, de quem será a responsabilidade? Certamente, da meia dúzia de técnicos independentes e irrepreensíveis que precisam de toda a sorte deste mundo. E do outro.

Jamais o crime organizado poderia constituir uma comissão independente para investigar colarinhos brancos, evidentemente. Reparem que se uma associação criminosa desse uma fatia dos seus enormes lucros à polícia judiciária para a investigar (poupando o já delapidado erário público), isso seria melhor do que ser o próprio crime organizado a investigar-se a si mesmo mas, ainda assim, suspeito e comprometido. Por isso, a rica Igreja Católica certamente não fará uma doação à PJ para analisar os crimes de colarinho preto mas ainda menos sentido faz que seja a Conferência Episcopal Portuguesa a determinar e a bancar a investigação a si própria, posto que não é lacre de imparcialidade alguma. Bem antes pelo contrário. Já agora, os 21 arquivos de cada uma das dioceses católicas (é aí que estão os documentos relevantes) estão sob a alçada dos Bispos, muitos dos quais estão contra este processo. Como se não bastasse, a Igreja Católica ainda não tornou obrigatória a denúncia às autoridades civis dos casos de abuso sexual e continuam a ser os bispos a fazer essa gestão. Ainda acredita? Fé?

Em matéria criminal, e ainda por cima tratando-se da integridade e dos direitos das crianças, há instituições para os garantir. Instituições essas a que a Igreja não pode nem deve sobrepor-se. Recorde-se, como aliás foi de novo sublinhado pela PJ esta semana, e como é óbvio, que as queixas nunca foram oriundas da própria igreja, partido sempre das vítimas e, noutros casos, surgindo de denúncias da imprensa ou por pressão política. Trata-se de uma instituição com dois mil anos, com muito poder e pouco escrutínio, onde o abuso está, infelizmente, intricado na sua própria orgânica, tanto que se revelou paraíso para predadores enquanto se proclamava dona da moral pública. Assim, a República Portuguesa devia chamar para si a responsabilidade de apurar todos os factos, não abrindo qualquer precedente. Hoje é a igreja que se investiga a si mesma, amanhã quem será? Um clube de futebol? Um banco? Os crimes prescrevem e os pecados não, mas nós precisamos de verdade e não de um milagre. Tomara que chegue. Oxalá.

Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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