50/50, uma edição da Tinta-da-China, eis o título premonitório, ominoso e irónico do mais recente livro de poesia de Pedro Mexia, aos 53 anos. Não é que a questão da meia-idade se coloque, no autor de Vida Oculta, nos mesmos termos em que se colocou para poetas (Dante, Villon, Paul Valery, Auden, Mourão-Ferreira, Drummond, Nemésio), que nessa entrada na segunda metade da existência viram ser a matura idade o tempo de uma serena inquietação, fruto de uma aprendizagem total do corpo e daquilo que, associado ao erotismo e, dentro do erotismo, ao sexo, é também uma aprendizagem serena do desencanto. Ou, se quisermos, do desencontro. Para lembrar palavras de David, um dos mestres escondidos de Mexia, "E por vezes sorrimos ou choramos / E por vezes por vezes ah por vezes / num segundo se evolam tantos anos!". Isto é: neste livro a aguda percepção do tempo releva do que em "Três linhas" (p.79) se estabelece como certeza: "Poesia sem experiência: / quanto mais vives / menos há a dizer.". E esta afirmação da inexperiência é, afinal de contas, a melhor forma de lermos a escrita de um poeta que, cada vez mais, concebe o escrever a vida como forma acentuadamente lúcida (e lúdica) de não ceder ao que foi o magistério dessa poesia da experiência que para Robert Langbaum tem as suas raízes não na rasura dos procedimentos da ocultação (alusão, metáfora, elipse, trocadilho, imagem), mas no fundo dramático que assiste à construção de uma "ficta persona". Neste particular, Mexia, atė por reclamar-se do cinema como alfa e ómega de muita da sua energia ficcional, não pode ser lido em clave autobiográfica. Estes seus poemas, na verdade, glosam o problema do tempo, da memória e da morte, mas o enfoque é, mesmo se dolorista, irónico, como se o poema que diz da inexperiência fosse uma arma de arremesso contra as certezas daqueles que não conseguiram senão fazer da poesia um arremedo de postulados, ou tão-só um pobre catálogo de episódios sem relevo. Em Mexia tal não acontece: a persona que se edifica é resgatada do império da morte concreta, essa que levou Sena a declarar que é de todos e virá. Porém, frente a essa certeza ergue-se, imperativa, a experiência da poesia, da ficção, mais altas e mais firmes, como colunas onde o poeta escreve os seus versos, fixando-os para seu uso, como portulano onde fossem sendo gravados os marcos geodésicos de um percurso: "Mudou o cabou e a lâmina / mudou a faca. / Escusas de dizer que não. / Tens nostalgia do que foste? / Pouco tempo para o que desejas? / Tem paciência, envelhece / com dignidade, falha a vida / sem fazer barulho […]" (p.73). A servir esse desiderato, muito há, nesta poesia elíptica e de recorte austero, algo de Auden, ou melhor, algo que vem dessa linhagem dos grandes melancólicos e chega ao poeta americano onde ao fundo da nostalgia se somam a descrença ou a crise religiosa, indissociável de algo que, julgo, cada vez mais marca o território poético de Pedro Mexia: o ser ele, talvez, o representante actual, não o único, de uma palavra a caminho da sua deflação religiosa. .A crise vem também daí: do fim absoluto de qualquer explicação católica ou de fé numa realidade que, entre a crueldade da morte, o seu absurdo, e a vitalidade da ficção, a sua promessa, se divide exactamente ao meio. A vida? Metade de tragédia, metade de imaginação: metade de nada, com a ilusão de outra metade que tivesse tudo. Por isso as figuras e as alusões cultas: Stig Dagerman (1923-1954), ou Rutger Hauer (1944-2019): a literatura e o jornalismo daquele, a poesia e o cinema neste último. Ou a arte das prosopopeias, de transformar as ficções em realidade de um passado eternizável. Esse é, de resto, o combate que neste livro podemos ver evoluir de página para página: o combate entre as realidades do real, entre o eu e mim-mesmo e os abismos que se vão saltando, evitando. Um dos mais lancinantes, ou perigosos, ou fascinantes: o que vem da inexistência dos que existiram um dia: "Existiram essas pessoas? / […] / existiu quem desistiu, quem mudou / quem morreu?", num dos primeiros andamentos do livro. Poesia, pois, que diz sermos a sombra do que fomos, com uma pergunta axial: "Se a poesia não faz nada acontecer / o que faz à poesia o que aconteceu?" (p.18). Neste 50/50 há, a responder a essa injunção terrível, versos lapidares - exactamente assim, lapidares porque se pensam e escrevem como inscrições tumulares, gravações para uma posteridade falsa, ironicamente dita - como estes, de um breve, mas forte poema: "É uma cicatriz hipertrófica, / diz o médico, ficam menos nítidas / mas nunca desaparecem. / Como tudo, diz o médico" (p.67), ou como lemos num dos mais clássicos versos dessa sequência de doze poemas, "Res Nullius", designação mais do que jurídica, porque posta ao serviço da construção ficcional, coisa sem dono, a vida, a pessoa que somos, a ser propriedade do primeiro que a fizer sua. Versos ancilares: "Aumentado até à insignificância / de te reduzires a res nullius" (p.56): "O cuidado intensivo de valer / a pena ficar vivo"(p.60). Na verdade, a poesia faz acontecer: escrevê-la é organizar a própria vida, transformando-a em livro, lição mallarmeana que Mexia conhece bem. O corpo e o amor, o tempo e a morte, o sexo e a ternura, o desencanto e o desencontro, isso tudo a que chamamos viver, ou estar vivendo, se se fixa em moldes de arte - pintura, cinema, literatura, música, arquitectura - de algum modo permanece vivo. O que aconteceu faz com que a poesia aconteça - é essa a radical origem da escrita. Como escreve Pedro Mexia nos quarenta e sete dísticos de "Testamento": "ele declara e assina // o valor das coisas que deixa // e pede desculpa / pelo seu valor // que está, sempre / esteve, à vista." (p.44). Um alto valor, diga-se, da vida como ficção mortal que vale a pena escrever. Professor, poeta e crítico literárioEscreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.