Passos de um cargo pós-nacional

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A pretensão de substituir a rotatividade por uma presidência do Conselho Europeu a tempo inteiro, por um período prolongado, não tem uma história longa: foi avançada , já neste século, por Chirac, Blair e Aznar e era por isso referida, ao tempo, como a “Proposta ABC”. Foi provavelmente a ideia que mais dividiu a convenção de que saiu o projecto de Tratado Constitucional. Apoiada pelos grandes países, e sustentada em termos que apontavam sem equívocos para a criação de um “leadership político personalizado” para a Europa, aparecia a grande número dos membros da convenção como um golpe na igualdade dos Estados e uma ameaça a um desenvolvimento institucional centrado na Comissão e no Parlamento Europeu, que tinha aceitação bem mais ampla.

Apostar ao mesmo tempo em duas presidências (“duplicação”, “bicefalia”, “sobreposição”, “confusão” foram expressões muito usadas ) em nada parecia ajudar à “transparência” e “legibilidade” das instituições, que tinham sido evocadas para justificar a convocação da convenção preparatória do tratado.

A larga oposição que a “Proposta ABC” encontrou deixou fortes marcas no compromisso final atingido. Ficou claro que se tratava do presidente para uma das instituições e não de “um presidente para a Europa” ou “para a União”, como teses apresentadas sustentavam; o processo de eleição, renovação e eventual destituição decorreria, por inteiro, no seu interior, como um processo entre pares, contrariamente também a teses que o defendiam; a duração do mandato equivaleria, à partida, a metade do tempo previsto para outros cargos (levando um sector a falar, por isso, durante algum tempo, num “presidente semi-permanente”). O Conselho Europeu é que seria , esse sim, autonomizado como “instituição europeia”, um estatuto que, até aí, não tinha. Ficava-se longe da ideia inicial de alguns dos principais defensores - mas foi essa distância que lhe garantiu a passagem.

Quando os referendos inviabilizaram o Tratado Constitucional, o “MNE da União” viu a sua denominação alterada no percurso que levaria ao Tratado de Lisboa - mas a solução para a presidência do Conselho Europeu passou quase intacta . Foi com a escolha e desempenho dos titulares que evoluiu o grau de definição do cargo.

O preenchimento inaugural acabou por fazer-se em finais de 2009, após peripécias abundantemente narradas, com recurso ao mundo político belga : Herman van Rampuy, com menos de um ano à frente do Governo, seria daí extraído pelos seus pares.

O ex-PM britânico Gordon Brown, então membro do Conselho, apresentaria o primeiro presidente permanente como um “construtor de consensos”, alguém que “tinha trazido um período de estabilidade política para o seu país”. Estava lançado um fio narrativo adequado à dimensão interna do cargo e que se articulava bem com a letra do Tratado de Lisboa (onde se prevê que o presidente, para além de impedido de exercer qualquer mandato nacional, não participe nas votações ).

Depois de Tusk, que foi o segundo titular do cargo, o processo de escolha voltaria ao alfobre belga, terminando antes do final do ano o mandato em curso de Charles Michel.

O novo cargo fez o seu caminho e já diversos relatórios e estudos académicos se ocuparam em detalhe das diferenças identificadas entre a fase do Conselho anterior à criação do presidente permanente e o período subsequente. Esperar-se-ia talvez um maior destaque para as diferenças na gestão de crises e na projecção externa (um domínio a merecer balanço), mas um dos pontos mais geralmente realçados vem a ser um saliente papel de “agenda setter” - quer em geral, quer na definição, em particular, duma “agenda estratégica”.

Em plena conformidade, na actual comunicação oficial do Conselho Europeu, encontra-se, a propósito do agendamento estratégico, a seguinte visão: “Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, liderou o processo, trabalhando em estreita colaboração com os dirigentes dos países da EU, de forma colectiva e inclusiva”, um processo “no âmbito do qual os dirigentes debatem e decidem em conjunto”. Refira-se que no momento actual a agenda estratégica para 2024-2029 se encontra definida, tendo sido adoptada na reunião de 27 de Junho de 2024.

Pelo relevo dos cargos e contraste das sequências, a recente escolha do ex-PM António Costa para ocupar o cargo a partir de Dezembro traz à memória um Conselho Europeu que, há duas décadas, lidando com a escolha da presidência da Comissão Europeia, acabou por extrair do seu mandato nacional, que ia a meio, o então PM Durão Barroso. No caso presente, é, porém, como se interviesse um “deus ex machina”: descendo de um alto cargo interno, um comunicado (no ponto em causa - a meu ver e no de muitos - ilegal!) tinha já antes ditado o motivo para o termo do mandato nacional.

Num continente de velha cultura, as vicissitudes da europeização podem associar ao teatro grego tanto a astúcia da razão, como as razões da astúcia.


Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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