Autor de romances como Soldados de Salamina, que fala da Guerra Civil, e também do ensaio histórico Anatomia de Um Instante, sobre o golpe do 23F, Javier Cercas conta, numa entrevista publicada esta quinta-feira no DN, o que se recorda do 20 de novembro de 1975, dia da morte de Francisco Franco, o generalíssimo que governava Espanha desde a década de 1930: “Para mim, foi um dia ótimo: tinha 13 anos e as aulas foram suspensas na escola. Quanto ao sentimento predominante em Espanha, não era de alegria nem de tristeza, mas de incerteza. Logicamente: tinham passado 40 anos de ditadura e ninguém sabia o que poderia acontecer.”A primeira parte da resposta reflete a memória de quem era então um adolescente, a alegria de um dia sem aulas. Já a ouvi muito parecida de muitos portugueses, crianças na altura do 25 de Abril, que se recordam sobretudo de que naquele dia histórico não foram à escola. Já a segunda parte da resposta de Javier Cercas, vem da análise de quem já leu muito sobre o pós-franquismo, e escreveu também, ou seja sobre toda a incerteza que vinha com o fim físico de um homem que prenunciava também o fim efetivo de um regime.As duas ditaduras ibéricas eram ambas antigas, mas diferentes na origem, como foram diferentes na forma como acabaram. Em Portugal, deu-se uma Revolução. Em Espanha, aconteceu uma Transição. Foram processos complicados, tanto cá como lá, e no caso espanhol o golpe falhado de 23 de fevereiro de 1981 teve um impacto tremendo, mas não no sentido desejado pelo coronel Tejero e seus cúmplices: acabou por mostrar, sim, a força da democracia espanhola, criando até alguns heróis improváveis.Uma outra das diferenças importantes entre Espanha e Portugal, naqueles anos quentes ibéricos de 1974 e 1975, foi a descolonização. Portugal saía de uma longa guerra em África, e via chegar o fim de um império nascido no século XV; a Espanha retirava apressadamente do Sara, mas na realidade o fim traumático do império tinha acontecido em 1898, quando perdeu Cuba e as Filipinas. Também a fazer diferença esteve a questão das autonomias, pois a diversidade da sociedade espanhola, até nas línguas, é bem maior. Mas mais importante do que estas diferenças, foi a semelhança no processo acelerado de consolidação da democracia, que levou a República Portuguesa e a monarquia espanhola, restaurada com Juan Carlos, a uma plena integração europeia, com os dois países a aderirem em conjunto à então Comunidade Económica Europeia, a CEE, a 1 de janeiro de 1986, uma data decisiva, como Javier Cercas também realça.Nenhum dos países ibéricos é imune à turbulência política, nem à atual crispação entre os atores políticos representantes de várias ideologias. Mas tanto Portugal como Espanha podem reivindicar sucesso neste último meio século. Falo agora sobretudo de Espanha, uma das maiores economias mundiais, com grande pujança cultural. Trocou a ditadura de Franco, o vencedor da Guerra Civil Espanhola de 1936-1939, por uma democracia que está entre as nações que a ONU considera de desenvolvimento muito avançado (Portugal também está), também entre os países com maior esperança média de vida à nascença, certamente no clube dos acima dos 80 anos (uma vez mais, sublinhemos, Portugal também). Não há razão nenhuma, pois, para 1 de janeiro de 2026, a efeméride dos 40 anos na CEE, hoje União Europeia, não ser celebrada com entusiasmo pelos espanhóis. Já agora, também pelos portugueses, seus vizinhos. Aliás, uma das conquistas da integração europeia foi a diluição das fronteiras físicas, aproximando os dois povos, sem nenhum deles ter de abdicar da sua individualidade.Também é muito interessante o que Javier Cercas nos diz sobre a monarquia espanhola, que regressou por vontade de Franco (o homem que acabou com a república), mas ganhou uma legitimidade muito própria com o compromisso de Juan Carlos com a construção da democracia. Houve erros do agora rei emérito, que afetam a forma como é visto pelos contemporâneos e provavelmente como será visto pela História, mas, diz o escritor, “o certo é que hoje o verdadeiro dilema em Espanha não é a monarquia ou a república, mas a democracia melhor ou pior; Em todo o caso, a monarquia não é um obstáculo para se ter a melhor democracia possível, como demonstra o facto de as melhores democracias do mundo - as escandinavas - serem monarquias parlamentares. Quanto a Felipe VI, não há dúvida de que está a fazer bem o seu trabalho.”Democracia melhor ou pior. Depende dos povos. É esse o desafio para Espanha. E também para Portugal. Diretor adjunto do Diário de Notícias