Para que servem os diplomatas?

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O que a profissão de diplomata pode trazer de intenso e profundo para a formação do que somos e para o alargamento do que pensamos é a experiência mais ou menos rica que cada um de nós terá para contar e explicar. Mas, para além do que esta deambulação cosmopolita pode trazer às nossas vidas, importa dizer para que servimos e que missão desempenhamos neste mundo.

Encontrei uma vez num almoço, nos anos benditos da troika, um senhor dos negócios que me quis demonstrar que de nada servíamos e que a existência de funcionários públicos como nós era apenas um obstáculo ao desenvolvimento económico. O facto de esse meu interlocutor estar atualmente condenado a uma pena de prisão por desmandos financeiros não afasta a necessidade de defender uma vez mais as servidões e as grandezas da vida diplomática, admitindo que um cadastro não elimina um argumento.

A facilidade e a frequência do diálogo direto entre os dirigentes políticos mundiais (com especial intensidade no quadro da União Europeia) não exoneram os Estados da necessidade de terem em permanência nas capitais e junto das organizações internacionais agentes com especial formação, dedicados a conhecer o ambiente e o contexto em que as decisões dos outros se formam e serem capazes de propor as melhores formas de as influenciar em nosso benefício.

Conhecer o ambiente onde se formam as decisões implica ir viver junto desses ambientes e aprender nesses contextos a entender outros países, outras culturas, outras visões do mundo. A globalização não nos transformou a todos em criaturas idênticas, falando o mesmo inglês básico e empobrecido que se tornou a língua franca do nosso tempo. As pessoas continuam a trazer consigo a sua história, a sua cultura, a sua particular experiência, que não cabem em folhas de excel. E a boa comunicação direta entre os líderes, que muitas vezes é decisiva, não dispensa um trabalho de preparação e estudo na retaguarda, que permite explicar o que está por trás de posturas e afirmações manifestadas.

Não sei porque escrevo hoje estas evidências triviais. Talvez porque saiba que para muitos a minha profissão ainda é vista como uma ociosidade mundana, passada entre festas, jantares e croquetes. A "diplomacia do croquete" foi uma expressão crismada também nesses felizes anos da troika. O mundo reduzia-se então à finança, a riqueza à especulação, o arrojo à esperteza. E agora?

Durante esta pandemia, o trabalho dos meus colegas na Representação Permanente em Bruxelas para a preparação de soluções europeias ou os esforços dos meus colegas em Pequim para a compra de ventiladores e material clínico nunca apareceram na linha da frente. Outros estiveram e estão na linha da frente. E isso é inteiramente justo e razoável. Da nossa parte, apenas pedimos que nos reconheçam no nosso modesto lugar da retaguarda.

Na verdade, eu queria hoje falar de mim e contar em quanto a experiência de uma vida diplomática me pôde formar e transformar. Mas o remorso pascaliano do moi haïssable, a má consciência que nos assalta por falar das nossas vidas pessoais em tempos de aflição e incerteza coletivas, levou-me a este discurso de defesa e justificação de uma carreira que escolhi e de que nunca me arrependi. Que tempo é este em que falar de flores é quase um crime?, perguntava Brecht num seu poema dos anos de chumbo. Talvez precisemos nós todos afinal de falar de flores.


Diplomata e escritor

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