Para que serve a arte?
O novo Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Gulbenkian, e os novos jardins que completam todo o quarteirão, abrem as portas ao público no dia 21 de setembro. Sei muito pouco do que vamos encontrar, mas confesso que estou mais expectante com os jardins do que com as obras plásticas. O que é mais importante: a arte ou a natureza construída? Mais difícil ainda: o que é a arte?
Diz-se que os gostos não se discutem, mas os gostos são das melhores discussões que podemos ter. A maior parte das pessoas tem alguma dificuldade em racionalizar o que seu instinto já escolheu: gosto mais de Picasso do que Dali; Saramago é melhor escritor que Lobo Antunes, etc. Encontrar a raiz destas escolhas é das melhores viagens que podemos fazer ao fundo de nós mesmos.
As minhas escolhas sobre a Gulbenkian são-me claras: sempre considerei o CAM como um museu, mais preocupado em fazer a história da arte contemporânea portuguesa, do que em estar no centro da cultura. Não está em causa a qualidade do acervo, a sua programação ou mesmo a sua estratégia. O CAM tem muito mérito, e é uma peça obrigatória para a arte em Portugal. Mas tem condições para ter mais impacte na cultura portuguesa.
Temos aqui dois conceitos diferentes que fazem toda a diferença: arte e cultura. Das 157 definições de cultura, escolho uma: a cultura é a nossa forma de ser, estar, pensar e agir. António José Saraiva dizia que a “Cultura é o que não é Natureza”. A cultura são as pessoas. É a diferença entre um alfacinha e um tripeiro. E a arte é o melhor da cultura. A cultura é escrever postais de Natal. A arte é “Os Maias”. A arte é inspiração, a cultura é educação.
Por outro lado, para mim os jardins idealizados por Ribeiro Teles são arte. Normalmente vejo mais humanismo, mais inspiração ou mais força nas árvores, plantas, flores, patos e pessoas que desfrutam o jardim, do que na programação do antigo CAM.
Há mais de 2500 anos que a filosofia anda a tentar encontrar uma definição definitiva para a arte (formalismo, representação pictórica, neowittgensteinianismo, etc). De cada vez que o faz, traça uma linha no chão, que separa o que é arte do que não é. E num verdadeiro jogo do gato e do rato, essa é a linha que os artistas criativos querem galgar. As artes plásticas vivem muito neste diálogo teórico interno, numa linguagem de especialista para especialista. O desplante chegou ao ridículo de se considerar arte tudo o que estiver dentro de um museu. Ou seja: a arte é o que o curador quiser.
Esta visão elitista da arte manifesta-se de várias formas, existirá sempre e tem a sua função. Mas não é o modelo que mais interessa ao país (logo, à cultura). O caso mais flagrante é o cinema. Uma produção cinematográfica demora meses e anos e pode envolver centenas ou mesmo milhares de pessoas. Custa milhões de euros, a grande maioria do erário público, e no final alguns realizadores dizem orgulhosamente que não filmam para os públicos. Não é verdade. É uma desculpa.
O culto exagerado da figura do realizador, levou historicamente à subvalorização do talento da equipa que contribui para a obra final, nomeadamente dos outros autores como os argumentistas, mas também os compositores. Com a cumplicidade da generalidade da crítica cinematográfica, criou-se uma cultura de pensamento acrítico, em que raramente se encontraram discussões sérias que nos levassem a aprender mais para fazer melhor. Não há verdadeira escola de cinema e por isso é que se suspira pela vinda dos grandes operadores de streaming, como a Netflix, para a produção nacional.
Não contesto a função importante do conservadorismo museológico (precisamos da História para cheirar o futuro), sou um fervoroso adepto da procura incansável de novas linguagens e novas abordagens, mas acredito que a principal função da arte é ajudar a cultura, é contribuir para uma sociedade mais forte. A arte pode ser tudo o que quisermos: jardins, museus, patos a acasalar, borrões na parede. Mas o que fica do que passa são as aprendizagens.
Como?
Se a filosofia não consegue encontrar uma definição para a arte, se os especialistas não encontram um enquadramento académico consensual, então proponho que sejam as pessoas a definir o que é arte para si. Eu adoto uma ideia com mais de um século: desde que Marcel Duchamps colocou um urinol industrial em exposição numa galeria de Nova Iorque (A Fonte, 1917), a arte é uma ideia. Esta abordagem tem a vantagem de assumir, de uma vez por todas, que a arte é um processo de comunicação. Podemos ser poetas e deixar os poemas na gaveta da secretária. Se publicamos um livro queremos falar com o público. A arte tem por isso um emissor, um recetor e uma mensagem. A arte é um diálogo entre criador e espetador. A arte é a ideia que queres comunicar ao mundo. Nem que seja ao teu mundo.
Consta que John Lennon conheceu Yoko Ono quando ela inaugurou uma exposição em que tudo na galeria era branco. Havia apenas um escadote no centro da sala, sob o qual pendia uma lupa presa ao teto por um fio. Subindo as escadas e pegando na lupa, era possível ler apenas uma palavra muito pequenina: LOVE. Podes gostar ou não, mas é uma ideia.
O divórcio entre a arte e a generalidade da população é típico dos países menos desenvolvidos. Os artistas não querem saber do povo e o povo não quer saber dos artistas. A sociedade não cresce com a arte. E o mundo da arte fecha-se num gueto ascético, fala para um número reduzido de pessoas, fica mais dependente das boas vontades e dos seus egos. A construção fica mais difícil, os estilos vigentes tendem a repetir-se à exaustão.
Quando algo está mal em Portugal, a maior parte das pessoas vira-se para o Estado: são precisos mais apoios, mais legislação, mais educação, e convém reforçar de novo a tecla de mais apoios. Num jantar de artistas o tema de conversa mais assíduo é o dinheiro. Normalmente esta não é a boa solução: desresponsabiliza-nos, é lenta e é raro ter uma resposta cabal.
Podemos sair deste aparente “beco sem saída” se deixarmos de ter tanto medo em criticar a arte, Este quadro é impressionista ou expressionista? É Monet ou Manet? Bolas, nunca tenho a certeza. O melhor é estar calado e não arriscar fazer figura de parvo.
A minha proposta é que cada pessoa avalie as suas experiências artísticas em função da sua opinião, e não em função dos cânones que poucos dominam, e que os catálogos de apoio tendem a complicar ainda mais. Isso quer dizer, por exemplo, que podemos dizer que não gostamos de Samuel Beckett ou Pedro Almodóvar e não vem nenhum mal ao mundo. Já deixei a meio livros de Hermann Hesse ou Milan Kundera, simplesmente porque não estava para ali virado.
Proponho assim quatro critérios para cada um avaliar as suas experiências de arte, seja teatro, literatura, documentário ou outro. Para mim, o mais importante é o enriquecimento pessoal, aquilo que me acrescenta algo, e que se faz de duas formas:
a reflexão que determinada peça me suscita (gerou sabedoria);
a novidade, porque assisti a algo novo (gerou conhecimento, alargou o meu mundo).
Mas devemos também promover um certo “fitness artístico”, algo que devemos praticar regularmente para mantermos a boa forma humanista. Daqui resultam outros dois critérios:
3. a fruição (o simples prazer de ver, ouvir ou sentir);
4. e a identidade (tudo o que tem a ver com a minha integração na sociedade - global ou local - que me dá sentido de pertença).
Cada experiência é única, varia de pessoa para pessoa, depende do seu estado de espírito, contexto, grau de conhecimento, e envolve ao mesmo tempo os quatro critérios. Nada é estanque, mas normalmente encontro mais reflexão na literatura e no documentário; inovação nas artes plásticas; fruição na música; e identidade um pouco por todo o lado.
Para que serve a arte?
Para tentarmos ser melhores pessoas no fim do dia. É uma ideia defendida de outra forma pelo filósofo Alain de Botton. O fundador da School of Life diz que os museus deveriam ser as catedrais dos ateus. Todos podem encontrar significado, esperança e pertença, no contacto regular com a arte. Nos museus lidamos com o sublime, o fantástico, o bigger than life. Se os artistas estiverem dispostos a assumir essa responsabilidade, a arte pode estar no centro da cidadania e da educação.
A arte está em todo o lado. Nos jardins e nos museus. Na verdade, tal como a beleza, a arte está no olhar. Há um artista-criador e há um artista-experimentador. Guernica já saiu das mãos de Picasso há muito tempo. Agora é de todos que a veem. Atrás de um muro de máxima segurança e de histerismo juvenil, foi uma das maiores desilusões da minha vida. Não a obra. Mas a minha experiência de a ver. Felizmente havia Goya.