Para acabar com o cinema português

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Até agora, não se ouviu um qualquer membro da classe política a pronunciar a palavra “cultura” nas discussões sobre o Orçamento do Estado. Não admira que, por estes dias, também não se tenha ouvido a palavra “cinema”. Pensar a existência do cinema em Portugal - ou de qualquer outro domínio artístico - dá muito trabalho.

A maioria da classe política consola-se com os gestos rápidos com que alguns dos seus membros emitem comunicados, e sorriem para as câmaras, celebrando o mais recente prémio ganho por um filme português algures no estrangeiro. Há também retóricas jornalísticas cúmplices deste vazio de ideias, sempre disponíveis para relançar o drama que, dizem eles, divide os “filmes intelectuais” dos “filmes comerciais” - com a mesma leviandade com que as mesmas questões eram enunciadas há 50 anos.

Em boa verdade, se a produção portuguesa conseguiu algum genuíno sucesso comercial em 2024 foi graças a Grand Tour: o filme realizado por Miguel Gomes foi vendido para 65 países (leia-se a informação divulgada à imprensa, a 25 de junho, pela produtora Uma Pedra no Sapato).

Não tenhamos ilusões: deixou de ser possível instalar, pelo menos, alguma forma de bom senso face à pluralidade de reflexões que números como estes poderiam suscitar. É sempre mais forte a estupidez dos discursos que proclamam que os “críticos” só gostam de filmes que “têm sucesso no estrangeiro” - o que significa também que nem sequer se dá a devida atenção às profundas e inconciliáveis diferenças que existem no espaço do pensamento crítico.

Sobram os nossos brandos costumes: as boas vontades que alimentam a continuada autoflagelação do cinema português tendem a lidar com tudo isto como se vivêssemos num mundo em que não existe televisão. Sem esquecer, entenda-se, que o território televisivo está, também ele, marcado por diferenças que vão desde a simples e meritória vontade de olhar e pensar o mundo à nossa volta até à agitação audiovisual dos atuais populismos mediáticos (transnacionais, é bem verdade).

'Ossos' (1997), de Pedro Costa: um cinema de muitas solidões.

Que literacia visual?

As perguntas que surgem são muitas, envolvendo fatores que vão desde a importância da Educação para uma verdadeira literacia visual até à promoção do futebol como matriz única e unívoca de orgulho nacional. Lembremos uma só dessas perguntas: quais os efeitos económicos e simbólicos, numa palavra, culturais do facto de, em paralelo com as frágeis estruturas de produção do cinema português, termos assistido à consolidação de uma poderosa indústria de telenovelas?

Os produtos dessa indústria instalaram um verdadeiro apocalipse cultural, contribuindo para a criação de um público (maioritário, não tenho dúvidas sobre isso) alheado de tudo o que faz a especificidade da experiência cinematográfica. 

Como? Através da imposição de modelos narrativos estereotipados, inimigos de todas as formas de criatividade que fazem mais de um século de história do cinema - dos modos de enquadramento até ao tratamento da luz, passando pela montagem, etc. E também “educando” sucessivas gerações de jovens atores e atrizes que foram convencidos de que a arte de representar não passa de uma coleção de poses e tiques psicológicos que, além do mais, lhes pode garantir a consagração pueril da imprensa dos “famosos”.

Em termos políticos, estão reunidas as condições para o cinema português viver (ou morrer) numa agonia regada por muitas lágrimas de crocodilo. 

Há dias, por exemplo, perante apoteótica indiferença, foi reposta a cópia restaurada de Ossos (1997), de Pedro Costa, um dos verdadeiros clássicos que o cinema português gerou em tempos de democracia. Acontece que quase toda a população portuguesa conhece melhor as possibilidades de transferência que, no final da época, se abrem para Viktor Gyökeres - excelente jogador, já agora, mas os críticos de cinema não percebem nada de futebol.

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