Palavra de poesia

Publicado a

A questão é só uma: por que razão não pode haver uma página de crítica de poesia num país, costuma dizer-se, "de poetas"? Houve um tempo (digamos, até inícios dos anos 2000), em que a crítica de poesia era regular. Não vale a pena enumerar as diversas revistas e jornais que, ao longo do século XX, foram dando conta dos grandes livros de poesia que eram publicados, ou estavam atentos ao que, de polémica, ou de novidade vinda de fora, ou de dentro, se fazia. O facto é este: é preciso manter viva uma página de crítica de poesia, posto que, se tudo se resumir a uma só coluna de crítica, o discurso plural é inexistente. Hoje, com efeito, exceptuando dois ou três nomes, poucos são os que exercem a crítica regular de livros de poesia. Para a ficção o cenário é (ainda) satisfatório – não obstante a atenção por demais inflacionada a livros de autores estrangeiros, parece-me.  

Há nomes tutelares da nossa história da poesia que, como poetas-críticos, eram presença constante em suplementos literários que ao lirismo prestavam a maior atenção. Aponto seis ou sete, cujas vozes críticas, para alguns autores ainda vivos e escrevendo actualmente, serão, em maior ou menor grau, nomes que evocam uma época em que fazer-se crítica correspondia a ler-se com rigor, com independência, analisando os eixos principais desta ou daquela obra. Jorge de Sena (1919-1978); António Ramos Rosa (1924-2013); David Mourão-Ferreira (1927-1996); Gastão Cruz (1941-2022), mas também académicos como Eduardo Prado Coelho (1944-2007), Maria Lúcia Lepecki (1940-2011), ou Eduardo Pitta (1949-2023), eis alguns desses nomes que, mais remota ou recentemente muitos reconhecem como críticos de poesia de primeiríssima ordem.  

Nas revistas literárias, de resto, essa tradição do poeta-crítico jamais deixou de estar presente e são muitos os que, fora do circuito mais visível deste ou daquele jornal, exercem a crítica e marcaram, ou marcam, um certo modo de estudar o fenómeno da poesia, seja quando escrevem sobre um livro, seja quando pensam a poesia em termos mais amplos. A poesia como «doença da linguagem» (Ruy Belo) ou como um estranho «engendramento» (G. Rubim), ou ainda como «processo de autonomização do discurso em relação ao real» (Nuno Júdice), isso interessa estudar e compreender. Atravessamos um tempo de escassez crítica, a vários níveis, imperando – e isso é especialmente visível em certa crítica juvenil que em algumas páginas se cultiva – a mera maledicência, a observação rasteira, o impressionismo mais canino, ou, quando não, a tresleitura, o juízo apressado, a leitura publicitária a mando de; a coluna crítica feita para obstruir, destruir ou, noutra estretégia diferente, silenciar, cancelar, dar a ideia de que alguém não existe. Ou a inversa: a crítica para alcandorar este ou aquele autor do Momento. E há até a crítica copiada do estilo neo-pacheco, serventuária do que se pensa estar up to date e que, julga-se, contribui para um debate ou um agitar de águas que, verdadeiramente, é infantil, até por estarmos já longe dos tempos dos corifeus ou dos papas de qualquer "ismo". 

Em alguma crítica de agora o que se espelha? Não só a escassez de pensamento crítico, mas – e sobretudo – este tempo de nojo, este "tempo detergente", mais detergente ainda que aquele a que Ruy Belo foi dado viver. Não raro, há um pseudo-jargão crítico com que uma nova escolinha de epígonos da crítica caceteira e superficial vai fazendo caminho. É um caminho condenado ao fracasso e onde vicejam novas superstições literárias, mais malsãs do que as referidas por Charles du Bos num ensaio célebre. Os nomes que indiquei acima são, na verdade, o contrário de certa crítica hodierna. São modelos de pensamento sobre literatura, não vozes arregimentadas por este ou aquele comité da poesia. Podemos não concordar com um determinado ponto de vista de David ou de Gastão Cruz, de Eduardo Prado Coelho ou de Eduardo Pitta e pode até o tempo ter provado estarem erradas determinadas análises que estes críticos e ensaístas fizeram desta ou daquela obra; porém, não encontraremos o destilar venenoso e medíocre, a crítica trampolineira e patologicamente persecutória, o assassinato de um livro, ou o ataque "ad hominem". E se encontrarmos, a que distância a elevação do debate!  

Se àqueles nomes juntarmos os de um Óscar Lopes (1917-2013) e de Jacinto do Prado Coelho (1920-1984), em cujos livros de ensaios estão muita da crítica que escreveram em jornais, rapidamente concluímos que é sobretudo um certo modo de aproximação da poesia – de sobre ela escrever e pensar, de nela fruir o próprio acto crítico – o que mais fascina quando lemos um texto sobre Eugénio de Andrade, no caso de Lopes, ou, no caso de Jacinto do Prado Coelho, um ensaio sobre Camões (p.exº: «Camões, Poeta do Desengano»). O mesmo acontece quando lemos as recensões dum David em Vinte Poetas Contemporâneos (1960), ou as recensões críticas de um Gastão Cruz em A Vida da Poesia – textos críticos reunidos (2008). Nestes há, se quisermos, uma fonte comum: o dispositivo crítico de dois mestres modernos: Pessoa e Eliot e, academicamente, as lições de R. Ingarden, sobretudo o nunca por demais lido A Obra de Arte Literária, um clássico da obra de arte literária como estrutura ontológica e entendida como corpo composto por camadas significativas. 

O estilo frásico destes autores é claro, os argumentos são válidos (se são verdadeiros, isso cabe ao tempo decidir), o saber poético não parte de qualquer forma de impressionismo, mas de um conhecimento dos instrumentos de análise textual. Um saber ancorado num amor à poesia (a sua luz forte), num prazer dos textos, eis o que temos. Mesmo se podemos identificar gostos, filiações, ou um tom de reprovação quanto a certas tendências, ou escolas, autores e/ou livros (mas é sempre a obra, na sua linguagem, que a estes autores importa estudar), isso é feito com adesão à obra. São o gosto e o gozo o que transluz nas belas páginas de análise literária destes poetas-críticos. Hoje, mais do que nunca, é essa clareza, esse bom-gosto (e até bom-senso) que urge cultivar contra o ódio, o facciosismo, o juízo sempre tendencioso que certos críticos (os poucos que há) insistem em fazer para, provinciana e preconceituosamente, se darem ares de que são aquele "monstro rangendo na treva" de que um dia falou Sena naquela "Carta ao jovem poeta", ou se pensarem os herdeiros de alguém que para eles é grande porque transformou a crítica em lamaçal onde se chafurda. 

Quer dizer: a necessidade de haver crítica de poesia impõe-se porque o magistério crítico (expressão passível da mais sórdida sátira, admito) é indissociável de um outro combate que temos de levar a cabo: o combate pela leitura. Corrijo: pela leitura de poesia num país que se celebra celebrando a morte do seu maior poeta, Camões. Não se pode fazer rasura do passado, nem se deve. A palavra de poesia, essa que, como diz Ramos Rosa, recusa toda a sorte de paternalismos e é, sobretudo, uma palavra humana, não pode ficar à mercê de quem, falando de poesia, jamais terá outro projecto que não o de achincalhar, morder, exercer o estilo neo-pacheco que não edifica, mas destrói aquele bom-senso que à crítica se pede.  

Significa isto que não possa haver polémica? Não. Ou que não possa haver divisões, ódios de estimação? Também não. Significa que à crítica se exige logos e não o pathos que se traduz frase convulsiva, torrencial, abjecta e ilógica do que abraça o barbarismo. Significa tão-só que para o leitor de poesia o que importa é a linguagem do livro e não tanto quem escreveu o quê. É essa a função da crítica: mostrar, elucidar, comentar a obra na sua composição linguística-ideológica-estilística. Eduardo Lourenço, se assim não tivesse pensado, jamais teria entendido a poesia como essa Esfinge para a qual, olhando-a nos olhos, melhor se compreende a razão pela qual ela se dirige, nas suas imagens, para aquele "lago escuro silente de juncais".  

Professor, poeta e crítico literário

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

Diário de Notícias
www.dn.pt