Os talibãs da liberdade de expressão

Ao contrário do que se crê - até porque só costumam ser notícia casos em que Portugal é condenado - o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos não dá sempre razão aos jornalistas. Mas há na sua jurisprudência um claro viés que, em nome da liberdade de expressão, valida violações gravíssimas de outros direitos.
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A 3 de outubro, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) considerou que um artigo publicado em 2010 no Correio da Manhã, assinado por Tânia Laranjo, no qual era relatada uma conversa telefónica privada, cuja gravação constava num processo, entre dois políticos - Edite Estrela e Armando Vara - sobre outros políticos, não se revestia de qualquer interesse público. Isto porque, explica a decisão, a conversa dizia apenas respeito a opiniões de figuras públicas sobre outras figuras públicas, não podendo considerar-se “como contribuindo para qualquer debate de interesse geral”. Por outras palavras, o artigo em questão surgiu para o TEDH, como tinha surgido para os tribunais portugueses que haviam condenado a sua autora, como uma pura intrusão na vida privada sem qualquer justificação informativa (ou jornalística) - pura coscuvilhice, maldade, voyeurismo e desígnio comercial, acrescento eu.

Desta decisão, que eu tenha dado conta, não houve qualquer eco nos media portugueses - muito menos no Correio da Manhã, que, com o rigor que o caracteriza, jamais noticia as decisões adversas de que é alvo na justiça, muito menos as condenações que vai sofrendo. É, aliás, uma tendência que se nota na generalidade dos media portugueses: embandeiram em arco quando são alvo de absolvições ou se veem “vingados” nas condenações do TEDH, mas calam quando ocorre o contrário. Coisa que, convenhamos, dificilmente poderá ser considerada bom jornalismo - com certeza que tanto é de interesse público saber que o Estado português foi condenado por violar a liberdade de expressão como conhecer de decisões dos juizes de Estrasburgo validando julgamentos dos tribunais nacionais que puniram detentores de carteira profissional de jornalista e/ou empresas de media por desrespeitarem a lei e/ou as regras da profissão.

Isto assente, parece inegável que a jurisprudência do TEDH é geralmente favorável aos jornalistas - a ponto de, mesmo quando o tribunal admite que violaram a lei, desrespeitaram as regras da profissão e causaram graves danos, tender a achar que qualquer indemnização que não seja mixuruca é “excessiva”, “desproporcionada” e com “um efeito desencorajador” da liberdade de expressão.

Paradigmático desse entendimento é o acórdão do TEDH que diz respeito a uma queixa da SIC, condenada em 2012 pelo Supremo nacional ao pagamento de 115 758 euros por ter, em dezembro de 2003, implicado o socialista açoriano Ricardo Rodrigues num processo de abuso sexual de menores no qual nunca foi arguido. A estação chegaria mesmo a, em janeiro de 2004, noticiar que o político fora detido para interrogatório - o que não aconteceu.

Decidindo sobre o caso nove anos após o fim do processo em Portugal, o TEDH admitiu que a atuação da SIC foi “irresponsável” e mereceu sanção por ter causado dano ao político no seu direito à reputação e à honra, mas que é “difícil de aceitar que o dano causado tenha um tal nível de gravidade que justifique uma indemnização daquela grandeza".

Argumenta o acórdão: “Um valor tão elevado, que é alto comparando com casos anteriores dizendo respeito a Portugal que o tribunal examinou (…), é também capaz de desencorajar a participação da Comunicação Social em debates sobre matérias de legítimo interesse público e tem um efeito inibidor na liberdade de expressão e na Comunicação Social. O tribunal considera-o assim excessivo neste caso (…) sendo a conclusão de que a interferência no direito à liberdade de expressão da empresa queixosa foi desproporcionada e não ‘necessária numa sociedade democrática’ (…)”.

Ricardo Rodrigues era membro do governo dos Açores quando a SIC o implicou na investigação de abusos sexuais de menores em curso e demitiu-se pouco depois, em dezembro de 2003. Uma parte da indemnização atribuída - 65 mil euros - dizia respeito, a título de danos patrimoniais, ao salários que perdeu nesse ano por se ter demitido; a indemnização por danos morais outorgada fora de 50 mil euros, valor ao qual o Supremo Tribunal disse ter chegado a partir de decisões sobre casos semelhantes, “ainda que menos graves”.

Ora, como já vimos, o TEDH achou uma exorbitância e, condenando Portugal a pagar mais de quatro mil euros à SIC a título de despesa com o processo em Estrasburgo, indicou qual o caminho que a empresa deveria seguir: pedir a reabertura do processo, através de um recurso de revisão no Supremo Tribunal. Este, em abril último, revogou o acórdão anterior (do Supremo) e, mantendo a indemnização por danos patrimoniais, atribuiu a Ricardo Rodrigues 10 mil euros por danos morais.

Por onde começar? Deverá ser óbvio para qualquer pessoa que só intentar a ação contra a SIC, que teve de passar por três instâncias, terá custado ao político açoriano muito mais que 10 mil euros, somando custas judiciais e honorários de advogado. E deverá, do mesmo modo, ser óbvio para toda a gente que ser implicado num processo de abuso sexual de menores é algo de gravíssimo, que deixa uma marca para a vida - até porque haverá sempre quem ache que “onde há fumo há fogo”. Como justificar então que o montante da indemnização por danos morais agora atribuída seja tão baixo que nem sirva para cobrir as despesas judiciais da pessoa difamada?

Se em algo com esta gravidade, num caso em que o TEDH reconhece ter existido uma conduta reprovável por parte da empresa jornalística, uma indemnização alta é “uma interferência desproporcionada no direito à liberdade de expressão”, que mensagem visam os juízes europeus, que não raras vezes dizem preocupar-se com a desinformação e advogam ser necessário que os jornalistas cumpram escrupulosamente as regras da sua profissão, passar à sociedade europeia?

Tudo visto e somado, parece poder-se concluir que a mensagem é: se a violação dos direitos de cidadãos for efetuada por pessoas com título de jornalista ou empresas jornalísticas (que, pequeno pormenor: visam o lucro) não é assim tão grave porque, alegadamente, tudo o que fazem, mesmo quando fazem tudo mal, é por uma boa causa. E que cidadãos com algum grau de notoriedade pública, nomeadamente políticos, têm de se conformar com praticamente tudo, em nome do “debate livre numa sociedade democrática”.

Podemos pois aventar que, caso a notícia do Correio da Manhã - notícia entre muitas aspas - sobre a conversa absolutamente sem qualquer interesse público que Edite Estrela e Armando Vara tiveram sobre outros políticos resultasse em mais, nos tribunais portugueses, que uma multa de 1000 euros aplicada a Tânia Laranjo, e houvesse qualquer indemnização aos lesados pela violação do seu direito à vida privada, o TEDH decidiria que tal era “desproporcionado” - não fosse existir um “efeito desencorajante” na “liberdade de expressão e na Comunicação Social”.

Ora eu, como cidadã e jornalista, acho que as decisões dos tribunais devem mesmo servir para desencorajar e inibir a violação dos direitos dos cidadãos e o mau jornalismo - ou, no caso, a negação do jornalismo. E que esta absoluta insensibilidade dos juízes europeus em relação ao direito ao bom nome, à honra e à vida privada - os chamados “direitos de personalidade” - em prol de um alegado bem maior, o da liberdade de expressão, é um péssimo serviço que prestam às sociedade democráticas. 

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