Os órfãos de 'Let It Be'
1 O reencontro com o filme Let It Be, de Michael Lyndsay-Hogg, é um acontecimento que define uma barreira existencial. A maior parte dos espectadores que estarão a descobri-lo agora (Disney+, desde o dia 8 de maio) não tinha nascido quando do seu lançamento, em 1970 - depois da estreia, entre nós com o título Improviso, o filme desapareceu de circulação, não existindo sequer numa edição em DVD. Foi há 54 anos. Não creio que seja possível partilhar com esses espectadores as singularidades intelectuais e emocionais da descoberta de Let It Be, até porque o espaço mediático português passou a viver assombrado por uma nova ideologia “libertadora” que tende a reduzir a nossa história coletiva - e, sobretudo, a história da “juventude” - a um negrume absoluto que, certamente por milagre, se dissipou no dia 25 de abril de 1974.
2 Tal aparato ideológico já gerou a sua própria antologia de lugares-comuns, incluindo a “informação” segundo a qual a juventude (a que pertenci) não podia usar cabelos compridos, os rapazes, nem minissaia, as raparigas. É o infantilismo democrático no seu máximo esplendor. Como se tais disparates nos ajudassem a compreender as componentes ditatoriais, a repressão física e a mediocridade moral do regime do Estado Novo - em boa verdade, nem sequer nos ajudam a conhecer os respetivos mecanismos censórios. Como se, afinal, não passássemos de zombies que sobrevivemos sem conhecer as alegrias, as contradições e os medos gerados na década de 1960. O mais triste deste apagamento histórico - de que a memória de Let It Be será apenas um pormenor - é o facto de, por vezes, o seu simplismo factual e simbólico ser promovido e praticado por pessoas da minha geração, quer dizer, precisamente as que viveram pelo menos uma parte significativa da adolescência marcadas pela música dos Beatles e, mais do que isso, por todas as convulsões culturais a que o quarteto de Liverpool pertenceu e, mais do que isso, encarnou.
3 Há qualquer coisa de irónico ou, pelo menos, desconcertante no facto de a redescoberta de Let It Be resultar da ação de Peter Jackson, na sequência da sua minissérie Get Back (Disney+) sobre as gravações do álbum que se chamaria também Let It Be, lançado a 8 de maio de 1970 - o filme começaria a surgir nos ecrãs de cinema poucos dias mais tarde (13 de maio nos EUA, 20 de maio no Reino Unido). Como se prova, as plataformas de streaming, frequentemente grosseiras na gestão das memórias cinematográficas e cinéfilas, afinal podem ser mais do que um espaço de acumulações arbitrárias, desempenhando um papel ativo, e construtivo, no nosso conhecimento dos filmes. Seria o último a tentar lidar com este objeto que “vem do passado” para impor uma qualquer vulgaridade nostálgica, supostamente universal - já basta o que basta. Além do mais, sempre me pareceu gratuita a ideia “crítica” segundo a qual um filme resiste “melhor” ou “pior” à passagem do tempo. Um filme é sempre igual - e o primoroso restauro da nova cópia serve de sintoma paradoxal disso mesmo. Acontece que quem muda somos nós, reencontrando cada filme marcados pela história que, entretanto, fomos vivendo.
4 Tudo isso revela inevitáveis diferenças nos olhares. Apesar disso, ou justamente por causa disso, é perturbante (para mim, entenda-se) rever Let It Be e sentir que se repete uma mesma perceção, em particular contemplando os rostos de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr. Ou seja: os quatro estavam cansados, muito cansados. Não apenas com o cansaço de uma atividade desgastante ao longo de uma década, mas através desse cansaço que poderia levá-los (e levou) a questionar o que significava continuar aquela odisseia de um quarteto que, literalmente, conquistou o mundo. Veja-se o rosto triste de Paul a interpretar a canção Let It Be, uma das raras situações em que um deles olha de frente para a câmara que está a filmar. Observem-se dois ou três momentos em que Ringo parece estar à beira de cair num sono radical, mesmo se isso nunca o impede de manter o ritmo certo. Ou ainda, mais explicitamente, escutem-se os momentos erráticos em que Paul explica a John as suas dúvidas sobre o modo como George lida mal com o facto de estarem a ser filmados para aquilo que, afinal, começou por ser a preparação para um concerto (que nunca se realizou). Sem esquecer, claro, os lendários minutos finais no telhado da editora Apple.
5 A orfandade em que nos descobrimos perante o fim dos Beatles terá ficado, para sempre, por resolver. Na verdade, esse fim tornou-se claro e, de algum modo, “oficial” através de uma entrevista de Paul publicada a 10 de abril de 1970. Que é como quem diz: algumas semanas antes do lançamento de Let It Be - o álbum e o filme. Assim, o álbum foi escutado como um eco de uma paisagem entregue à sua própria imaginação, para sempre inacessível. Mesmo que não soubéssemos (e, de facto, não sabíamos) como exprimi-lo, o filme foi visto como uma prova dolorosa do poder documental do cinema - aconteceu, ficou registado, não se vai repetir. Será que os adolescentes deste ano da graça de 2024 sabem que o cinema só vale a pena se for esse sobressalto de momentos únicos que não se repetem, mesmo quando estamos a reencontrar o mesmo filme? Alguém anda a ensinar-lhes as dificuldades de conhecer o mundo?