Os oceanos e as águas turvas da hipocrisia política
A terceira conferência das Nações Unidas sobre os oceanos decorreu esta semana em Nice, na costa mediterrânica francesa. Centrou-se na exploração sustentável dos altos mares, ou seja, dos oceanos que pertencem a todos e ao mesmo tempo não são de ninguém. Até às duzentas milhas estamos nas chamadas Zonas Económicas Exclusivas (ZEE). A regulamentação internacional dá aos Estados ribeirinhos direitos soberanos sobre os recursos marinhos existentes na respetiva ZEE, segundo a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, aprovada em 1982.
Os limites de certas ZEE são uma fonte de conflito entre Estados. Alguns dos mais conhecidos acontecem no Pacífico, a norte entre a Federação Russa e o Japão, e entre a China e múltiplos países ribeirinhos do Mar do Sul da China. Na região europeia existe um conflito aberto entre a Espanha e a Itália, de um lado, e do outro, a Argélia, relativo à delimitação do Mediterrâneo. Conflitos deste género devem ser resolvidos por meio de negociações bilaterais ou recorrendo ao Tribunal Internacional de Justiça. Assim tem acontecido, nalguns casos, infelizmente não em todos.
Mas para além das questões ligadas ao uso dos altos mares ou à definição dos limites de algumas ZEE, o grande problema reside na utilização abusiva das águas territoriais, que não podem ir para além das 12 milhas marítimas a partir da costa. É sobretudo aí que se faz a destruição do ambiente marinho e dos recursos essenciais para a sobrevivência das populações costeiras. As regras existentes são frequentemente violadas, sobretudo pelas empresas de pesca industrial, que deitam borda fora cerca de metade do que vem nas redes e que as leis proíbem de trazer para as lotas. O arrasto efetuado pelos navios-fábrica destrói os fundos marinhos, os ecossistemas.
Muitos dos jovens migrantes provenientes dos países costeiros da África Ocidental, nomeadamente do Senegal, da Gâmbia ou da Mauritânia, teriam ficado nas suas terras se os barcos de pesca europeus, chineses, russos, sul-coreanos e outros, não estivessem constantemente a laborar em larga escala nas águas territoriais desses Estados. As zonas tradicionais de pesca, aquelas que as embarcações artesanais, as pirogas dos pobres, conseguem atingir, e onde múltiplas espécies fazem a sua desova, têm cada vez menos recursos pesqueiros e já não possibilitam o mínimo necessário para a subsistência das populações locais. A emigração para a Europa, através da muito arriscada travessia marítima em direção às Canárias ou utilizando sobretudo Marrocos como plataforma, tornou-se uma alternativa na luta pela sobrevivência.
Uma outra dimensão relaciona-se com a confusão política que a Europa e outros provocam nesses países. Para facilitar os acordos de pesca, a Europa concede apoio orçamental aos governos da região. Essa ajuda raramente chega às populações mais necessitadas, menos ainda aos mais jovens, que aí constituem a maioria dos cidadãos sem emprego e sem perspetivas de futuro. Os fundos europeus são utilizados para manter uma governação inadequada e, tantas vezes, corrupta. O fosso entre as elites no poder e as populações jovens alarga-se continuamente. Gera instabilidade social e contribui para a radicalização política.
É fundamental olhar para os mares e os oceanos como essenciais para a estabilidade das comunidades e como fazendo parte da nossa relação equilibrada com o meio ambiente e os seres vivos com quem partilhamos o planeta. As conclusões provenientes de conferências como esta de agora em Nice fazem parte de um todo e devem ser respeitadas. Quando tal não acontece estamos a pôr em causa o nosso e o futuro da casa comum, que é o nosso planeta. Quando não se reconhece a diversidade da vida abre-se a porta aos poderosos, dá-se razão aos facínoras da realpolitik, que acreditam que a força e o poder económico são os critérios que realmente contam.
Os poderosos e os hipócritas políticos gostam de participar em eventos como o de Nice. Não perdem uma oportunidade para falar de paz e de geopolítica. Utilizam esses conceitos como artifícios para nos impedir de ver as realidades e para defender os seus interesses egoístas e os regimes prepotentes em que se movem. Chegámos ao ponto de sermos confrontados, nos espaços públicos, com citações de indivíduos sem credibilidade alguma, mas que tentam convencer-nos que as democracias não acatam os protocolos internacionais e estão na origem dos principais conflitos do presente. Esses comentadores nunca apontam o dedo na direção dos autocratas.
Infelizmente, a hipocrisia vende bem e chama ainda melhor a atenção. Na comunicação social e na política, o cinismo faz parte do negócio. Falar dos oceanos, defender a cooperação internacional e uma relação equilibrada perante todas as formas de vida, é tido pelos cínicos como coisa de tontos. Mas não é. Nice, a natureza, os jovens africanos que nunca serão pescadores, como o foram os seus pais e avós, a ética política, tudo nos deve lembrar que há princípios e que o seu respeito é essencial.
Conselheiro em segurança internacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU