Os nossos Aliados no Afeganistão

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"I will find you and I will kill you.” Se leu esta frase com a voz do ator Liam Neeson, no papel do agente Bryan Mills na série Taken, desengane-se: esta frase não é ficção. Estas foram as palavras ameaçadoras de um talibã contra um afegão que trabalhou junto das forças norte-americanas e aliadas durante a guerra do Afeganistão.

A guerra no Afeganistão é a guerra mais longa dos Estados Unidos da América (EUA). Em fevereiro de 2020, a Administração norte-americana de Trump e o grupo terrorista talibã assinaram um acordo de paz - o Acordo de Doha - que previa quatro compromissos, nomeadamente o fim do uso do território afegão para atividades terroristas (safe heaven); a retirada das Forças Aliadas até maio de 2021; a negociação para um Governo estável e a cessação permanente da violência. O presidente Biden, o sucessor, estabeleceu um prazo limite, 31 de agosto de 2021.

Em finais de agosto de 2021 o mundo assistiu à retirada caótica das Forças Aliadas, que ficou também marcada pelo ataque suicida do ISIS-K (grupo afiliado do grupo terrorista Daesh) junto ao Aeroporto Internacional Hamid Karzai, em Cabul: morreram 170 afegãos e 13 jovens soldados norte-americanos. Imagens de pânico, desespero e violência correram a imprensa mundial. O documentário da HBO Escape from Kabul (2022) é fiel aos acontecimentos, demonstrando o horror vivido. No meio do caos, as forças militares norte-americanas conseguiram retirar 124 000 pessoas do país.

Foram 20 longos anos de combate e perdas militares que terminaram com o que se pretendia evitar: os talibãs voltaram ao poder e o Afeganistão está novamente imbuído num regime violento e opressor. As consequências da retirada são diversas, abrangendo um enredo complexo de questões geopolíticas, securitárias, humanitárias, migratórias e económicas. Por exemplo, estima-se que uma quantidade avultada de armas e explosivos, provenientes das Forças Ocidentais, terão caído nas mãos dos talibãs. Uma outra consequência da guerra é a situação dos afegãos que trabalharam junto das Forças Americanas e Aliadas durante a guerra. Uma das ajudas mais visíveis e conhecidas incide sobre os tradutores/intérpretes afegãos. É deles que vos quero falar.

Os tradutores são fundamentais: em diversas circunstâncias, o seu trabalho permitiu evitar a morte de civis e militares. No entanto, o apoio prestado colocou estes indivíduos, e as suas famílias, numa posição de risco extremo, na mira dos talibãs. Após a tomada do poder, centenas foram ameaçados, brutalmente torturados, perseguidos e mortos a tiro. Outros permanecem no país, vivendo em localizações secretas, com medo de serem capturados. A relevância do seu contributo já atraiu Hollywood com a produção de filmes inspirados em histórias reais, tais como Kandahar e The Covenant, ambos de 2023, que retratam as dificuldades sofridas.

Segundo dados da Casa Branca, estima-se que o programa norte-americano Operation Allies Welcome (2021), renomeado Enduring Welcome em 2022, tenha já conseguido “acolher” aproximadamente 100 000 afegãos nos EUA desde a retirada das forças militares. Estas estatísticas parecem-nos discutíveis - acolhimento em que sentido? Seja como for, há uma evidência clara: três anos depois (2024), estima-se que ainda estejam milhares no Afeganistão. Em 2021 o Departamento de Estado norte-americano contabilizou mais de 60 000 de tradutores requerentes de asilo no país.

A Association of  Wartime Allies (AWA) - uma associação criada em 2019 por veteranos norte-americanos com o objetivo de apoiar iraquianos e afegãos que trabalharam com o Governo - é categórica: “The majority of our wartime allies have been left behind.” Deixámos os nossos aliados para trás. Para muitos tradutores, este abandono revelou-se em um “ato de traição”.
A situação é dramática e os números são avassaladores. Como dar apoio e refúgio a tantos? Como acolher? Apesar da emergência para a concessão de asilo e dos esforços de veteranos e da sociedade civil, o sonho americano continua a ser um caminho longínquo para os tradutores e as suas famílias. O processo para a obtenção de asilo é complexo, sendo também dificultado pela burocracia governamental, pautada pelos traumas da Guerra Contra o Terror. O caso do tradutor afegão Zalmay Niazy é ilustrativo.

Niazy chegou aos EUA em 2014 a propósito de um convite por parte das forças militares norte-americanas. A saída do território afegão resultou no aparecimento de ameaças de morte dos talibãs contra os seus pais. O seu tio já havia sido assassinado pelo grupo. Perante os ultimatos e o peso de uma decisão difícil, Niazy escolheu ficar em solo americano e pedir asilo político. A entrevista com os agentes de imigração durou 7 horas.

O pedido foi recusado. Porquê? O Governo norte-americano acusou-o de ter estado envolvido em atividades terroristas porque, durante a infância, ofereceu um pedaço de pão a um talibã, sob coação e ameaças de morte contra a família. Esta situação, vivida por uma criança de 8 ou 9 anos, foi o suficiente para arrastar o processo de pedido de asilo durante anos, mesmo tendo o afegão trabalhado mais de 10 anos junto das Forças Aliadas. O trabalho, a simpatia e o empreendedorismo de Niazy moveu a comunidade de Iowa: “Ele é provavelmente mais Americano do que algumas pessoas que nasceram aqui”, declarou um americano em entrevista à CBS. O pedido de proteção humanitária foi-lhe concedido, mas chegou apenas em 2023, 9 anos depois de aterrar nos EUA.

Os tradutores afegãos são nossos Aliados - isso é uma realidade irrefutável. É nosso dever apoiá-los. O que fazer quanto aos restantes e as suas famílias? A sua situação é apenas uma das consequências desta longa guerra. Como proteger as mulheres e crianças diariamente oprimidas e abusadas? Para onde caminha o Afeganistão? À exceção da Rússia, nenhum Estado soberano reconhece o Governo talibã.

Três anos depois da retirada das Forças Aliadas, o país continua a servir de santuário para grupos terroristas como a Al-Qaeda e o Daesh, com destaque para as atividades do afiliado ISIS-K, vivendo uma situação profundamente preocupante e trágica do ponto de vista humanitário.

Este artigo pretende ser, sobretudo, um alerta para uma situação dificílima. Em 2024, é tempo de deixar os discursos de culpabilização, mas atuar no sentido da proatividade, fazer balanços, traçar lições aprendidas e delinear possíveis soluções. Permanecer vigilantes, com intelligence relevante.

É possível discutir a pertinência do início da guerra e reconhecer que o objetivo final não foi bem-sucedido, mas também é importante não esquecer os esforços incansáveis que foram feitos ao longo dos anos, e honrar as vítimas. O trabalho de todos os militares e civis que estiveram ao serviço da ISAF (Força Internacional de Apoio à Segurança) e da Resolute Support Mission (RSM) - missões nas quais Portugal esteve empenhado - merece o nosso inteiro respeito. Valorizar os esforços coletivos é uma marca fundamental da comunidade Ocidental.

Em nome da segurança, paz e da estabilização da região, as soluções para o futuro do Afeganistão não devem perder essa matriz.

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