Os náufragos do Império
Sobreviventes, o filme de José Barahona que tivemos oportunidade de ver no Indie Festival (e para quando a sua exibição nas salas de cinema?), é, para além de um belo filme, ritmado pelo rumor das ondas do mar, uma obra que se inscreve, com plena oportunidade e sem sombra de oportunismo, no debate entre nós necessário sobre o colonialismo e a escravidão.
Um navio negreiro naufraga e os sobreviventes falham naturalmente em reinstalar a ordem escravocrata, dominados que estão pela necessária luta de sobrevivência. Mas não há aqui quaisquer complacências: a violência é a matriz daquelas relações e nunca isso é esquecido. A chegada a uma espécie de quilombo, onde outros escravos naufragados se organizaram em comunidade, mostra que não há paraísos: os brancos (a proprietária de engenho, a menina engravidada pelo mordomo negro, o padre e o intelectual consciente e crítico do tráfico) são feitos escravos dos seus antigo escravos, numa reversão da situação, que só conhece uma abertura para a dignidade de todos quando da festa dionisíaca que se segue a uma bem-sucedida pescaria.
O filme não oferece quaisquer ilusões e mostra bem como a humanidade de todos, opressores e oprimidos, se vê negada e abafada pela ordem colonial escravocrata.
O questionamento atual desse passado ganha, com este filme, uma expressão artística poderosa e um ponto de partida para um debate inteligente e sem maniqueísmos sobre o nosso passado histórico.
Mais do que reparações que não apagam o irreparável, é a consciência plena da desumanidade do sistema colonial escravocrata, que por certo não foi invenção nem exclusivo dos portugueses, mas que nem por isso deixa de estar na nossa matriz histórica, é essa consciência lúcida e sem disfarces que faz falta à nossa condição comum de portugueses. Nós não estávamos lá, por certo, e muitos de nós combateram esse regime iníquo, muitas vezes ao preço da sua vida ou da sua liberdade. Mas enquanto comunidade histórica constituída em nação não podemos ignorar ou dourar esse passado.
Tal não significa uma mera condenação moralista, antes deve apontar para uma lição sobre o presente. É contra todas as formas de humilhação e desumanização que persistem nos dias de hoje que uma consciência esclarecida se deve bater.
Mas o conhecimento de nós próprios passa também pela memória, que se não pode perder, das lutas do passado. Nesse sentido, constitui uma valiosíssima contribuição o recente livro de Manuel Alegre, Memórias Minhas, que nos consegue trazer, com a naturalidade de uma conversa aberta, todo um percurso de vida poético e revolucionário e assim traz para junto de nós a nossa História recente, com todas as suas zonas negras e todas as suas vitórias, vista por um dos seus protagonistas essenciais.
O poeta Patrice da La Tour du Pin disse um dia que “todos os países que deixaram de ter lenda estão condenados a morrer de frio”. Nós temos de ter uma nova épica sobre nós próprios, como nos convida Manuel Alegre no final das suas Memórias Minhas. Mas uma épica que não minta nem oculte, como a mitologia lusotropicalista faz, mas que seja uma épica de luta e não de contrição, de desafio e não de sujeição. Uma épica ligada aos grandes movimentos emancipatórios da História e não aos ecos nostálgicos de um Império que naufragou.