Os Media são muito mais importantes do que pensam

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“A liberdade de imprensa não é apenas importante para a democracia, é a democracia” 
Walter Cronkite

A democratização da produção de informação, a utopia de que cada cidadão pode ser um jornalista, está a tornar-se num pesadelo. Vivemos na era da informação, somos inundados com tsunamis de notícias, e cresce a sensação que estamos mal informados, que grande parte da informação consumida foi manipulada, que andamos sempre a tocar na rama e poucas vezes vamos ao fundo dos problemas. Tal como numa boa democracia não basta haver eleições, é preciso conhecimento e educação cívica para haver escolhas responsáveis; também no jornalismo não basta haver um púlpito para falar, é preciso ter o conhecimento e a integridade para (in)formar. Afinal os profissionais sempre servem para alguma coisa.

Há 30 anos já sabíamos o que ia acontecer: a Internet iria revolucionar a forma como comunicamos. E as empresas de comunicação social – sobretudo da imprensa – pouco ou nada fizeram para lidar com a nova realidade. Pela minha experiência, isto aconteceu porque a grande maioria dos gestores das empresas de comunicação social não dominavam como deveriam o negócio da informação, e os jornalistas, quando eram “promovidos” a cargos dirigentes, não sabiam muito de gestão. Qualquer pessoa sabe gerir um negócio que funciona bem – basta não fazer asneiras –, mas é preciso ter visão e coragem quando o negócio está a mudar. Com medo do futuro, os gestores tendem a fechar-se na única ferramenta que sabem usar com segurança: olhar para o Excel e cortar nos custos. Previsivelmente esta redução deriva numa deterioração da qualidade do produto, o que faz perder clientes e consequentemente receitas. 

Tenho a noção que não é fácil lidar com a hecatombe. Nem todos os títulos têm salvação. Mas o que foi feito, e o sobretudo que não foi feito, deixa-me desesperado. No início do século fiz parte de uma equipa que no Diário Económico pensou neste assunto. Se uma redação for considerada uma plataforma de informação, no input temos a recolha de informação e no output podemos ter vários meios de difusão para chegarmos a mais clientes e mais receitas. Uma redação pode alimentar um jornal, um site, (o que já era normal na altura), mas também uma rádio e uma televisão. O projeto – da iniciativa dos jornalistas – esteve quase a ver a luz do dia, mas depois uma luta de egos deitou tudo a perder. A equipa saiu do Diário Económico e foi fundar o Jornal de Negócios. 

Era uma solução para lidar com o problema. O mundo estava a mudar. O negócio estava a mudar. Do que chegou à luz do dia, não vi muito mais engenho nos outros meios de comunicação social. E estamos onde estamos.

O problema também é nosso

Seria fácil dizer que este é um problema dos acionistas, se os Media não fossem tão importantes para a sociedade. Apesar do aumento substancial da quantidade de informação, não há necessariamente um aumento da qualidade de informação. Há boas exceções, mas por princípio a independência jornalística exige independência financeira das empresas de comunicação. Vemos todos os dias que a falta de dinheiro afeta a qualidade jornalística: com cortes nas despesas, há menos jornalistas; dos que ficam, há uma tendência para contratar jovens (mais baratos) e despedir os mais caros (os mais experientes que têm memória); os que sobram têm de fazer mais notícias para assegurar o fecho da edição e tudo tem de ser feito a correr: não há tempo para o jornalismo de investigação; não há tempo para confirmar informação; não há tempo para sair da redação, pagar um táxi, ouvir as pessoas com tempo, e regressar noutro táxi, por causa de uma informação incerta.

Se na crise financeira o mundo se mobilizou para salvar a banca dos DDT, poderia mobilizar-se para encontrar um novo rumo para os Media. Não é um problema económico-financeiro, é um problema de política de desenvolvimento. A democracia depende da uma comunicação social saudável. A economia depende de jornalistas atentos e inteligentes. As empresas de comunicação social precisam de novas formas de financiamento, o país precisa de novas ferramentas para o desenvolvimento.

Porque os Media são importantes?

Guterres foi eleito em 1995 com a o discurso da “paixão pela Educação”. Quando foi eleito, foi transferido mais dinheiro para a Educação. Mas os resultados foram escassos, porque o modelo de ensino manteve-se todos os anos, quando a sociedade estava a mudar todos os dias. Todos concordam que precisamos de melhor Educação, mas não podemos estar à espera desta Escola, porque o sistema de ensino universal é um naufrago à espera do resgate (ver artigo: Queremos pensar ou queremos obedecer?). 

A escola tradicional precisa mais de nós, do que nós dela. Entre outras coisas, porque crescemos num modelo em que se tirava um “canudo”, arranjava-se um emprego para o resto da vida e ninguém se preocupava mais. Hoje um eletricista ganha mais do que um arquiteto, e há doutorados nas filas do centro de emprego. A Escola já não é o centro do conhecimento. O saber está em todo o lado: pais, famílias, vizinhos, automobilistas, empregos, clubes desportivos, religiões, etc. E o meio que fala com todos e que todos liga é a comunicação social.

A comunicação social é muito mais importante do que pensa, se quiser mudar e tornar-se realmente importante. Para andarem todos a fazer o mesmo, não se justifica salvar o que quer que seja. Basta deixar morrer uns quantos títulos e rezar para que não apareçam outros tantos. Para a sociedade apoiar a comunicação social, os Media têm de apoiar a sociedade. Como desenvolvi no meu último artigo – O Ministério do Conhecimento -, o conhecimento é o grande desafio para a sociedade e para a economia portuguesas. Precisamos de aprender a aprender, e devemos criar círculos virtuosos do conhecimento. Temos de criar uma cultura de comunicação assertiva, com gosto pela curiosidade, pelo saber fazer, pelo pensamento crítico e pela ética. Na era da IA precisamos de melhores humanos.
Mesmo que a escola soubesse o que fazer, não seria logisticamente possível enviar toda a população para a sala de aula. A solução é a comunicação social. Também porque tem formatos apelativos que podem ser importantes para as aprendizagens. Se quisermos, os Media podem ser a escola depois da escola. Não como escola em formato de professor e aluno, mas como meio de promoção do conhecimento.

Por razões óbvias este é o modelo certo para o serviço público de televisão e rádio, mas pode ser alargado voluntariamente a todos os órgãos de comunicação social que queiram aderir. O serviço público para o conhecimento não é uma empresa pública, é uma estratégia de educação para o desenvolvimento, baseada na comunicação. Nesta fase, começo a ouvir gritos que sou um censor, e estou a mexer na independência dos jornalistas. Não: estou a propor um modelo para gerar novas receitas, que garantam mais liberdade e independência aos jornalistas. Estas receitas serão naturalmente subvenções estatais. Mas, num projeto bem executado, seriam o melhor investimento que um país possa sonhar. Melhor que investir em estradas, é investir a sério em pessoas.

Por outro lado, a comunicação social deveria repensar sobre a forma como trabalha. Por exemplo: O que é notícia? Parece uma pergunta absurda, mas é a mais importante de todas. Como a comunicação social é um negócio, dir-se-ia que são as informações que mais interessam aos seus clientes. Mas se analisamos as notícias mais importantes - a abertura de um noticiário televisivo ou radiofónico, ou a manchete de um jornal – vemos que a maior percentagem de notícias incide sobre a política. Claro que é importante sabermos o que pensa o primeiro-ministro, mas neste mundo em que tudo é importante, o conhecimento que mais me valoriza é aquele que me diz o que vai acontecer amanhã. Claro que quero saber se amanhã vai haver eleições. Mas é muito mais importante saber, por exemplo, se vai haver uma vacina para o cancro ou, melhor ainda, se a ciência vai erradicar todas as doenças – um debate muito vivo dentro da comunidade científica. Há um desfasamento entre a oferta e a procura de informação, que há modelos alternativos não explorados.

Como jornalista, sei que os Media gostam de dar destaque ao poder, porque é uma forma de serem poder. A maior parte dos jornalistas que conheci alimentava o sonho secreto de serem os protagonistas do próximo Watergate. As redações habituaram-se. Os leitores e telespetadores habituaram-se. Mas é possível fazer outro tipo de informação, com mais potencial económico. O primeiro passo é fugir aos canais de informação tradicionais, rasgar a agenda institucional e desenhar um novo modelo focado nos interesses dos clientes. 

A minha proposta é conciliar inovação empresarial com interesse público: entre muitas outras abordagens, interessa ao Estado dispor de cidadãos mais conhecedores da realidade geral, num misto de redação e ensino. Por exemplo: como ajudar as pessoas a liderem melhor com o mundo que as rodeia e a lidarem melhor com elas próprias? Esta é a informação que mais interessa aos clientes dos Media e aos “utentes” do serviço público. Nada que não se veja na capa do The Guardian.

Claro que a ideia não é dar “Ópera” ao “povo”. A educação é um processo de comunicação e, por exemplo, na televisão de massas devemos manter os formatos populares para chegar às pessoas. A telenovela pode ser uma excelente fonte de formação para os públicos que estão habituados a ver novelas. Podemos manter a estrutura melodramática, mas enriquecer com personagens com situações que sejam mais pedagógicas, usando o nível de linguagem a que o público está habituado. 

No próximo artigo vou ser mais específico sobre uma programação de serviço público. 

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