Os bots expiatórios do vota abaixo
Regressei à escola em 2019. Depois da faculdade, e de quase duas décadas de mercado de trabalho, voltei aos tempos do Ensino Básico e Secundário com o DeliberaEscola, projecto de incentivo à participação cívica, dirigido a estudantes do 7.º ao 12.º ano. Saí da experiência, promovida pela associação Fórum dos Cidadãos, algures entre os estados de esperançada e angustiada.
Salvo raras excepções, conheci alunos preocupados com violações dos Direitos Humanos, interessados em perceber como agir em defesa de um mundo menos desigual, e cheios de vontade de expressar - e formar - opinião.
Daí vem a minha esperança, reforçada pela diversidade e originalidade desse universo: a maioria dos estudantes envolvidos foram seleccionados por sorteio, metodologia aplicada para encorajar a participação dos que habitualmente ficam de fora. Seja por timidez, por acreditarem que nada de relevante têm para dizer, por interiorizarem que não têm jeito para falar em público, ou por temerem a reacção dos pares, a maior parte dos mais de 300 alunos que encontrei estava resignadamente à parte.
A partir do momento em que foram sorteados, tiveram acesso a dinâmicas de intervenção cívica e, não só aceitaram continuar no projecto - poderiam recusar -, como acabaram por envolver outros colegas igualmente sem histórico de participação.
Leia-se, à laia de exemplo, um par de relatos que pude ouvir enquanto coordenadora do DeliberaEscola. “Foi bom finalmente ter um debate onde nos ouvíamos e não nos atropelávamos uns aos outros”, apontou um dos alunos, depois de uma conversa sobre as possibilidades ainda por concretizar da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento.
Noutro momento, uma estudante sublinhou a importância dos assuntos abordados ao longo dos encontros que o projecto facilitou - da saúde mental à literacia sobre instituições democráticas -, acrescentando que os mesmos são, “muitas vezes, ignorados”.
Também não faltou quem destacasse o reforço de competências: “Melhorei a escuta activa, empatia, comunicação, pensamento crítico e autonomia”.
Tudo isso aconteceu em dois anos lectivos e, apesar dos resultados animadores, o projecto - financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, e com apoio institucional da Direcção-Geral da Educação (DGE) - foi descontinuado.
Pelo tempo de algumas reuniões, ainda alimentei a esperança de que a DGE pudesse assumir os custos da intervenção, e facilitar o alargamento do projecto para além dos 13 agrupamentos de escolas abrangidos. Mas depressa se impôs a mesma justificação de sempre: não há orçamento.
Daí vem a minha angústia. Não é a falta de dinheiro que me inquieta, mas sim a imposição de uma visão que confunde Educação com competição.
Entre testes, notas, rankings, currículos sobrecarregados, transições digitais, que pessoas estamos a formar?
Bem sei que o problema não é novo, conforme a contestação dos professores vem demonstrando, mas há novos desafios que agravam as consequências de termos uma escola pública incapaz de acolher todas as vozes, de assumir a responsabilidade de Educar para o respeito e aceitação das diferenças e divergências.
Tudo isto me ocorre enquanto leio um extenso - e necessário - trabalho jornalístico sobre o avanço de ideais de extrema-direita no TikTok, rede popularizada entre os mais novos.
Embora me seja evidente a atracção do eleitorado jovem por candidatos que se dizem anti-sistema, não consigo atribuir a uma rede social, por si só, o poder de “fabricar extremistas”. Ainda que reconheça o efeito sedutor e amplificador dos influencers, dos likes e reacções, sobretudo em idades precoces, entendo que o ódio e a ideologia do “voto abaixo o sistema” que aí proliferam são apenas um reflexo da sociedade em que no transformámos.
Enquanto nos vamos deixando inebriar por algoritmos e afins, e à medida que os avanços tecnológicos nos forem entretendo com ilusões de “inteligência”, perdemo-nos de valores que não deveriam ser negociáveis.
Se há jovens que se relacionam com liberdades democráticas, como quem apaga uma aplicação e descarrega outra, quantos haverá à espera de um sorteio para serem ouvidos?
Chamem-me ingénua, mas os meus dois anos lectivos de regresso à escola, vividos entre 2020 e 2022, mostraram-me que, como em tantos outros retratos de grupo, o ruído de uns se confunde com a voz de todos.
Nunca me esqueço, por exemplo, das palavras do Daniel, um dos estudantes sorteados para participar no DeliberaEscola: “Tenho nove anos de coisas guardadas por dizer”, apontou.
O olhar, crítica e construtivamente apresentado, reflectiu sobre oito áreas da vida escolar: apoio ao estudo; actividade desportiva e cultural; alimentação; biblioteca; espaço exterior; edifícios; relações humanas; e equipamentos. Para todas as dimensões, o Daniel e os colegas apontaram pontos positivos e negativos, e aspectos a melhorar.
Fizeram-no com debate, consciência e de forma colaborativa. Sem a desresponsabilização de bots expiatórios. Eu voto nisso.
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