Os algarvios não são portugueses. E os algarvios são os mais portugueses. Portugal, na verdade, começa quando se começa a antever o Tejo, de sul para norte. Mas esse é só um Portugal. Há o outro, que discorre pelo Alentejo, esse outro mistério, e alcança o seu auge quando se chega ao outro mar. Essa terra sempre desejada, a mais desejada: afinal quis-se muito, durante muito tempo, chegar a esse limite sul. Muito sangue, muito retrocesso, muita esperança. E chegou-se. Mesmo se fosse sempre Portugal e o Algarve, esses reinos aproximados num desejo de unidade. “Alentejanos, algarvios e cães de caça, é tudo a mesma raça”, dizia-se.O Algarve, até ao século XX, era terra para onde se enviavam degredados. Degredados internos. Ladrões de gado em Vinhais iam cumprir pena para Castro Marim. Infanticidas de Lisboa iam para Silves. E a pena era aí ficarem. Aos homens, a sofrer no sal, nas pernas, as chagas. E as muitas terras como coutos de homiziados, terras que, na fronteira, defendiam o Guadiana e o Atlântico, que aqui soava de outra maneira, e acolhiam os fugitivos da justiça, lugares de asilo para quem quisesse começar de novo.Era também terra de piratas, a mais próxima do norte de África, a mais suscetível aos ataques na sua longa e amigável costa, no seu doce mar, para quem ali aportasse, a bem ou a mal. E, no outro sentido, terra de emigração. O Brasil, a Venezuela, menos África. E até Lisboa...Sempre foi terra de encontros no desencontro acelerado de gentes. Em poucos quilómetros de diferença, cruzavam-se imediatamente os que viviam do mar e os que viviam da terra, num diálogo de escambo e de silêncios entre vidas radicais na sua diferença. Trocavam-se figos secos e aguardente por carapaus e sardinhas, uma alegoria de mundos que só se tocavam num encontro de estrada, entre bicicletas e alcofas. Depois, muito depois, veio a indústria da viagem e do turismo e tudo mudou. Claro que a generalidade das pessoas vive melhor, como todos nós. Tem sapatos, tem um médico que não aparece por caridade, tem escola.Mas veio a ganância e a velocidade, essas externalidades dos ditos sucessos, que normalmente se declinam em pessoas a pisarem outras em direção a um novo mundo, sempre prometido, sempre luminoso. Aproveitou-se um dos melhores climas e paisagens do Mundo para se criar um aquartelamento de outros degredados, episódicos e voluntários, a quem os locais serviam. E isso trouxe êxtase e a subsequente depressão, num ciclo interminável. E trouxe destruição e, pior, fealdade. Provavelmente nunca nenhum português foi tão maltratado como um algarvio a viver no Algarve. Espoliado, até por si próprio, do que a vida lhe deu sem nada pedir em troca.É esta a história de base das pessoas que agora votam no Chega como nenhuns outros entre nós. Os que não têm médico ou professor, porque até eles não têm dinheiro para pagar a renda de casa. E os que se sentem esquecidos e com sede de vingança, até sobre si próprios. Que veem, no fundo da estrada, a miragem da bicicleta com a alcofa – ou, talvez, gorpelha – das sardinhas, a rodar lenta, no fundo da sua cabeça. No fundo da cabeça, somos sempre uma ideia perfeita de troca e de harmonia, como se não houvesse qualquer dor sobre qualquer dúvida. Mas pode ser só alcofinha, que se diz que é “quem faz intrigas”.Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa