Opinião pessoal (LXXXVI) Sobre a escola "Lar da criança"

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No princípio dos anos 50, a “Escola da Câmara”, à Rua Pereira e Sousa, em Campo de Ourique, apesar das suas razoáveis instalações e de estar próxima da nossa casa, não foi a escolha de meus pais para a educação dos filhos. Preferiram uma escola que observasse princípios de laicidade e de independência política em relação ao regime. Ora, isso não era possível nos estabelecimentos oficiais, visto que tinham em cada sala, pendurados na parede, por cima da ardósia, um crucifixo, ladeado por retratos de Salazar e de Carmona. Era essa a regra em todas as escolas públicas, no tempo do Estado Novo, que meus pais não aceitavam.

Por essa razão, inscreveram os filhos no “Lar da Criança”, uma escola nova, instalada numa vivenda da Rua Almeida Brandão, à Estrela, que tinha sido inaugurada para se dedicar ao ensino primário, em administração privada. Ao contrário do tal estabelecimento camarário que separava, em alas distintas, estanques, as alunas e os alunos, no “Lar da Criança” a distinção de género era pouco rígida. Os convívios eram frequentes e os almoços na cantina juntavam todas e todos.

O ensino era laico, marcado por modernos conceitos educativos, introduzidos pela pedagoga Berta Ávila de Melo (1920-2011).

Desde a primeira classe até ao exame da quarta, vivi tempos memoráveis. Aí aprendi a ler e escrever, mas muito mais. Também a compreender a importância da cultura, da literatura, da arte e da música. Relembro as magníficas sessões de canto e coral conduzidas por Francine Benoît (1894-1990), com quem comecei a cantar a “Portuguesa”, além de canções populares. Personalidade ímpar, Francine era muito respeitada nos meios da Oposição.

Gosto de reviver esses dias, incluindo lembranças apimentadas: comia, com gozo, as ginjas que conseguia alcançar ao trepar a árvore do pátio ou, à socapa, provava os queijos artesanais fabricados pelos próprios alunos nas aulas demonstrativas sobre lacticínios, deixando-os marcados pelo meu atrevimento...

Também recordo as lições de inglês e os exercícios com aguarelas em papel cavalinho, a par dos trabalhos manuais com barro que, depois de moldado e seco era pintado.

Aprendi os significados da Sentença de Salomão e da parábola da Espada de Dâmocles. Narrativas que viriam a marcar o meu pensamento para o futuro.

Na Sala do Médico, os exames periódicos pelo pediatra Farmhouse eram minuciosos. Um exemplo do valor da saúde escolar. Foi ele que orientou a vacinação contra a varíola, inoculada com a “caneta”, que iria erradicar a doença, em 1980.

Agora, a Escola irá festejar 75 anos de existência. Lá estarei.

Ex-diretor-geral da Saúde

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