A UE está a vender a alma no acordo com a Turquia

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A União Europeia tem dois ativos que eu sempre pensei que nunca estariam à venda, por muito que tenha questionado várias decisões. O primeiro é a falta de alternativa. De que outra forma podem os europeus enfrentar as mudanças climáticas, uma crise de refugiados ou um ultra-assertivo presidente russo que não através da UE?

O segundo é a superioridade moral. Quando comparada com a maioria dos seus Estados membros, a UE é menos corrupta, tem mais princípios e é mais dirigida por regras. Embora o mundo das políticas nacionais esteja cheio de estrategas em busca do ganho a curto prazo, o bloco consegue uma melhor combinação de políticos e políticas. Constitui amplas coligações e formula objetivos políticos estratégicos. O seu horizonte estende-se para lá da vida de uma legislatura.

Em poucos anos esses ativos foram destruídos. A má gestão da crise da zona euro tornou possível a formulação de uma argumentação económica racional para uma saída.

Na sexta-feira, a UE perdeu o seu outro ativo principal. O acordo com a Turquia é o mais sórdido que eu já vi na política europeia moderna. No dia em que os líderes da UE assinaram o acordo, Recep Tayyip Erdogan, o presidente turco, revelou tudo: "A democracia, a liberdade e o Estado de direito... Para nós, essas palavras já não têm absolutamente nenhum valor." Naquele momento, o Conselho Europeu deveria ter terminado a conversa com Ahmet Davutoglu, o primeiro-ministro turco, e tê-lo mandado para casa. Mas, em vez disso, fez um acordo com ele - dinheiro e muito mais em troca de ajuda com a crise de refugiados.

A Turquia vai relocalizar cerca de 72 000 refugiados para a UE - uma troca de um para um por cada imigrante ilegal que os turcos apanharem em barcos de contrabandistas no mar Egeu. Em troca, a UE está a pagar à Turquia seis mil milhões de euros e a abrir um novo capítulo nas negociações de adesão à UE - isto com um país cuja liderança acabou de abolir a democracia. A UE está ainda decidida a permitir a isenção de visto para 75 milhões de habitantes da Turquia. A UE não só vendeu a sua alma naquele dia como, na verdade, negociou um muito mau acordo.

Eu não estou em posição de julgar se este acordo está em conformidade com a Convenção de Genebra e outras peças do direito internacional. Parto do princípio de que o Conselho Europeu se certificou que o acordo se aguentaria em tribunal. Mas, mesmo que seja considerado legal, eu tenho dúvidas que possa ser implementado. Será interessante observar se a UE irá renegar as suas promessas à Turquia se Ancara não cumprir.

Mesmo que o acordo seja implementado na íntegra não vai aliviar muito a pressão. O número esperado de refugiados a caminho da UE será um grande múltiplo dos 72 000 acordados com a Turquia. Um estudo alemão sobre o fluxo de refugiados para este ano concluiu que os números calculados para este ano poderão estar entre os 1,8 milhões e os 6,4 milhões. Este último número representa o pior cenário possível, que incluiria um grande número de pessoas vindas do Norte de África.

O encerramento da rota dos Balcãs ocidentais para os refugiados - da Grécia através da Macedónia, Sérvia, Croácia, Eslovénia até à Áustria e Alemanha - trouxe um alívio a curto prazo para os europeus do Norte, mas existem inúmeras rotas alternativas que os refugiados podem tomar. Eles podem ir através do Cáucaso e da Ucrânia ou através do Mediterrâneo para Itália e Espanha. Se os países fecharem as suas fronteiras, eles não irão reduzir o fluxo de refugiados, mas simplesmente desviá-los. É um exemplo clássico de uma política de empurrar para o vizinho. Isto mostra que, a nível da UE, o argumento a favor de uma política de imobilização de refugiados é esmagador.

Um dos casos mais flagrantes de ação unilateral é o encerramento das fronteiras da Áustria. O país vai agora reintroduzir os controlos no seu principal posto de fronteira com a Itália - na autoestrada da passagem de Brenner. Esta é uma das rotas mais movimentadas entre a Europa do Sul e do Norte. Os refugiados que chegam a Itália podem esperar mais ação nas suas fronteiras do Norte. Nesse momento poder-se-á contar com a reintrodução de controlos fronteiriços em França, na Suíça e na Eslovénia. A Itália seria então excluída do espaço Schengen, ao qual pertence, e Schengen passaria a ser um pequeno clube de países do Norte da Europa, possivelmente um modelo para uma futura zona euro. Este seria o primeiro passo na fragmentação da UE.

O acordo com a Turquia terá também impacto sobre o debate do referendo no Reino Unido. Não terão os partidários da saída da UE alguma coisa a dizer sobre a isenção de visto para 75 milhões de turcos? Qualquer pessoa que se preocupe com a democracia e os direitos humanos vai odiar este acordo. O mesmo acontecerá com quem teme o domínio alemão da UE, uma vez que ele foi iniciado por Angela Merkel. A chanceler alemã precisava desesperadamente dele para conseguir sair de um buraco que ela própria cavou. Foi a sua decisão unilateral de abrir as fronteiras da Alemanha que transformou uma crise de refugiados possível de ser gerida numa crise incontrolável.

Não é fácil expor uma argumentação puramente racional para a saída da Grã-Bretanha da UE. Mas, quando a UE perde a sua superioridade moral, não devemos ficar surpreendidos por as pessoas começarem a questionar o que ela representa e para que serve.

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