1. Não é a primeira vez que a ele recorro, mas o facto é que este diálogo entre Otelo Saraiva de Carvalho e Olof Palme não ficou completamente datado no ano em que supostamente aconteceu. "O que quer Portugal com esta Revolução?", perguntou o carismático líder da social-democracia europeia da década de 1970, entretanto assassinado, como se se sabe, a Otelo. Porque era enorme a curiosidade que estava instalada em toda a Europa sobre o curso do nosso país após o derrube da ditadura pelo golpe militar de 1974. Porque Otelo estava, por isso mesmo e a convite oficial, em visita à Suécia. Porque o capitão de Abril não tinha papas na língua, terá respondido qualquer coisa assim: "Queremos acabar com os ricos." Interessante, reagiu o então primeiro-ministro sueco, "nós andamos a tentar acabar com os pobres há 20 anos e não conseguimos"..Esta conversa continua atual por dois motivos, nenhum deles é bom. O primeiro é que, quatro décadas depois, os portugueses continuam mais empenhados em procurar a justa medida da repartição de sacrifícios, sem conseguir perceber por que motivos não consegue gerar mais riqueza. Aliás, foram os poucos ricos que a democracia, subsidiada com uns fundos europeus, foi gerando desde a adesão que simplesmente desapareceram..Otelo, 40 anos depois, cumpriu a missão: os ricos tornaram-se entretanto em endividados, estão clandestinos ou foram constituídos arguidos..É a segunda das razões que, no entanto, me leva hoje a recordar Otelo e Olof: se é certo que o nosso país continua a odiar ricos e a censurar a riqueza, também não é menos verdade que foi incapaz de lidar com a pobreza. Não foi Otelo nem o socialismo português que derrubaram os ricos de trazer por casa - foi o próprio capitalismo que fez haraquiri e destruiu a acumulação de capital..2. Os fenómenos de pobreza estão estudados, as suas origens identificadas, as respostas sociais é que são mal desenhadas. Ou, mais precisamente, são os estímulos que estão errados, as regras do jogo são viciadas. Não é a falta de dinheiro que explica os pobres que temos. Milhões de milhões de euros foram, só na última década, transferidos do Estado para o Terceiro Setor ou diretamente aplicados em medidas dirigidas a grupos vulneráveis ou vítimas de exclusão social..Esta é, aliás, a causa mais nobre que desde sempre encontrei para justificar as políticas que procuram o equilíbrio das finanças públicas - para que o Estado nunca falte aos que mais dele necessitam. Mas tal não justifica que, em pleno século XXI, se combata a pobreza na mesma lógica que orientou as políticas sociais do século passado..O Estado continua a mobilizar mais meios para mitigar as consequências da exclusão do que a atacar as raízes do problema. A regra do financiamento público é cega, trata de forma igual projetos com resultados diferentes - porque, como acontece em muitas outras dimensões, privilegia-se a ótica de inputs e não de outputs. (Já reparou como os próprios ministros são muito mais avaliados pelo orçamento que recebem do que pelos reais impactos que as suas políticas geram?!).E não há qualquer relação entre investimento social, ou até um subsídio a fundo perdido, e a avaliação dos impactos que a política ou o projeto gera. Dito de outra forma, mesmo com a restrição financeira que vivemos, o país poderia ser mais eficaz na redução da pobreza se, também aqui, prevalecesse uma cultura de mérito - e não de assistencialismo, que fomenta a subsidiodependência de IPSS seguramente bem-intencionadas, mas pouco ou nada inclusivas..3. O estudo da Rede Europeia Anti-Pobreza, ontem divulgado, padece do mesmo defeito: prova que o problema cresceu com a crise, mas reduz o problema a dimensões quantitativas. Quantos menos receberam rendimento social de inserção. Menos milhões para a ação social. Enfim, confirma que o programa de ajustamento penalizou mais os pobres do que a classe média. E que, por conseguinte, as desigualdades sociais agravaram-se nos anos mais recentes, porque se tornaram mais restritivos os critérios de atribuição de subsídios de natureza social, desde logo a começar pelos mecanismos de proteção ao próprio desemprego..Não é propriamente uma surpresa. Mas também não é uma coisa muito discutida, as fórmulas que existem e devem ser fomentadas para quebrar os ciclos de pobreza. A inovação social é muito mais do que um chavão, há milhares de empreendedores e atores sociais que não se resignam à ideia de que um excluído tem de assim ficar para toda a vida. A receber esmola, sopa e roupa. Ou rendimentos garantidos, que de inserção só têm o nome..A abordagem que nós próprios fazemos, na comunicação social, não é a mais incisiva nem a mais inclusiva possível. Das fatalidades dos ricos tratamos mais, porque delas se escreve boa parte da história de definhamento do próprio capitalismo nacional: da especulação, dos compadrios, da afetação de recursos desajustada à racionalidade do próprio mercado, dos desvios que violaram leis e violentaram a ética..O maior paradoxo deste desastre nem é o colapso do BES ou a implosão da PT, ou o desaparecimento da bolsa, ou a brasileirização da Cimpor, ou o controlo chinês do setor elétrico. A coisa mais difícil de explicar, no país estruturalmente mais débil da zona euro, foi ver Portugal cair no terceiro resgate da sua democracia com capacidade instalada a mais: bancos a mais, imobiliário a mais, construção a mais..Demasiada coisa a mais para uma economia de menos. Como os pobres de Olof e os ricos de Otelo.