Os ingratos
1 "Há textos que devem ser lidos, recortados e guardados para não serem esquecidos. E foi o que fiz com o último artigo de Manuel Carvalho no Público", confessava-me um amigo, que dizia "não saber quem ele é", mas que estava rendido à escrita do colunista.
O colunista é jornalista e, não por acaso, já integrou várias direções daquele jornal. Também eu já lera o artigo de domingo, com a vantagem de saber perfeitamente quem é o Manuel Carvalho. Consegui, há vinte anos, convencê-lo a trocar o então pujante diário de Belmiro de Azevedo pelo Diário Económico, na época não mais do que um promissor projeto, que passei a dirigir pela ousadia de Miguel Paes do Amaral.
O Manuel esteve pouco tempo no projeto (a Sonae contra-atacou) mas ficou meu amigo até hoje. E, como o acompanho desde sempre, faço-lhe justiça e, sem hesitações, afianço que os seus textos merecem ser lidos, recortados e discutidos - não por serem sempre certeiros (não há quem...), mas por serem invariavelmente honestos. E, quando necessário, invulgarmente corajosos.
Ao contrário de personagens magnas e diletantes, este é um transmontano que não envergonha os seus. Usa as mãos para escrever. E não as poupa, nas frases em que é genuíno, nas contundências em que se revela autêntico. É homem de uma só cara, sensatamente regulado. Desceu o Douro para se estabelecer no Porto, mas continuou fiel a si próprio, humilde e firme, não um mole tático, à espera da próxima nomeação, para piorar, a personificação do inútil narciso.
Portugal não é a Irlanda - escrevia, crítico sobre a justiça de um mundo que dá o "privilégio a multinacionais através de regimes fiscais que roçam o escândalo". Tudo a propósito da decisão da Comissão Europeia que exige à Apple a devolução dos 13 mil milhões de euros que, supostamente, deveria ter pago ao Estado irlandês, desde 1991.
É um caso interessantíssimo, que toca em vários aspetos muito relevantes. Do eterno dilema das soberanias nacionais na União Europeia à, também habitual, discussão sobre a incerteza que uma medida com efeitos retroativos provoca junto dos investidores. Do nunca resolvido dumping fiscal entre países que partilham a mesma moeda, até à relação que Bruxelas faz perigar com Washington, uma vez que os seus burocratas ameaçam o gigante deles e um dos protagonistas da economia digital que promove a revolução social e económica que estamos a viver.
Mas não é por nenhuma destas razões que Manuel Carvalho, o meu Manel, assinala o óbvio: Portugal não é a Irlanda.
2 Então o que o terá impressionado? Ou espantado, para usar a sua expressão. Foi a unanimidade nacional. Foi o facto de todos (o governo, a oposição, a esmagadora maioria da população) não terem hesitado em dizer: não queremos!
Os irlandeses disseram que não querem os 13 mil milhões de euros que, como assinalava a revista The Economist, seriam suficientes para assegurar o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde do país durante todo o próximo ano.
E porquê? Porque permitem os irlandeses serem "roubados" por uma empresa que lucra e lucra e lucra, vinte e cinco anos consecutivos, sem devolver à sociedade uma parte justa de tudo o que ganhou? Sou eu quem rouba agora uma parte do texto, porque não seria capaz de escrever melhor: "espantamo-nos porque em causa está, de facto, muito dinheiro. E espantamo-nos ainda mais porque somos capazes de antecipar com alguma precisão o que aconteceria em Portugal numa situação dessas".
E Manuel Carvalho simula o que não nos custa adivinhar: "teríamos a direita radical a lembrar que as benesses fiscais são úteis para atrair investimento estrangeiro; teríamos a esquerda radical a pedir a revolução, a deportação dos capitalistas e, quiçá, a queima organizada de iPhones na fogueira; teríamos Passos Coelho e António Costa a dizer que a culpa foi do passado ou do presente. O que não teríamos jamais era aquilo que os irlandeses têm revelado: consenso e partilha de ideias e de princípios mínimos sobre uma estratégia para o país".
3 Nem mais, nem menos. O que nos move enquanto povo? Onde está o "desígnio nacional" que António Guterres anunciou nos seus governos da década de 1990 mas, passaram as décadas, mudámos até de século e ainda continuamos a procurar.
Não é bem uma falha de governo - embora seja penoso ver António Costa, depois de tudo o que disse e anunciou, reduzir-se novamente ao défice público e centrar na porcaria de um número a prova material do pífio sucesso que a sua política económica até agora alcançou. Não é um problema sequer e somente da classe política - embora seja vergonhoso ver duas "vices" do PSD reconhecerem que as reformas do Estado estão por fazer.
Este é provavelmente o maior fracasso da nossa democracia: depois de entrar na Europa, Portugal não é capaz de responder para onde caminha. Mas há uns com mais responsabilidades do que outros - e quando PS e PSD ficam calados quando se fala de consenso, quando falam em partido quando se pergunta pelo país, fico chateado. Pois está claro, que ficamos chateados...
Ao fim de 30 anos, a Irlanda sabe explicar porque não quer o dinheiro dos impostos da Apple. Simplesmente porque os irlandeses decidiram, de forma consciente e assumida, abdicar dele. Os economistas chamam-lhe discriminação positiva (e fiscalmente muito agressiva) do investimento externo. Para o irlandês comum é a base do "milagre" económico que, sustentadamente, trouxe o seu PIB per capita, pior que o português, para entre os maiores da Europa.
Ainda na primeira metade da década de 1990, um empresário de Dublin explicava-me que transferira a sede do seu grupo para a Grã-Bretanha, para pagar menos IRC enquanto "estrangeiro". Caíram governos, mudou o poder, a banca faliu, até a troika lá tiveram dentro - e não houve quem os conseguisse demover.
E é esta a questão levantada pelo Manuel. Que sensibilizou o meu outro amigo e eu aqui reproduzo. Na forma de desafio, lançado por quem confessa não ter uma resposta óbvia: ao que nos agarramos nós? Qual é o nosso consenso? Do que se discute, daquilo que nos toca, o que nos faz correr? Portugal não é a Irlanda. Mas somos campeões europeus. Haverá algo mais que nos faça gritar em uníssono, mesmo que cantado, ainda que desafinado, sem ser o hino nacional numa bancada de estádio de futebol?