Um governo fofinho
1. Pegue na máquina de calcular: são devolvidos os salários que foram cortados à função pública; são descongeladas as pensões; menos IRS por eliminação da sobretaxa; sobe o salário mínimo nacional, reduzem-se as contribuições patronais para a segurança social; ficam mais baixas as taxas moderadoras na saúde. Se Passos era o pirómano da austeridade, Costa inunda com o excesso de liquidez. Centeno é bom nas contas de cabeça, a dúvida destes dias é por quanto tempo a sua cabeça aguenta estas contas.
O ministro das Finanças é simpático, já os tivemos no Terreiro do Paço, outros ministros, todos sorrisos. Maioria, simpatia. Os exames que se extinguem. Feriados devolvidos. Penhoras de casas vedadas ao fisco e à previdência. Contribuintes em dívida, falência, paciência que os transportes urbanos serão retirados aos privados e de novo pelos sindicatos confiscados.
O Partido Socialista reaprende o diálogo, antídoto para a crispação social, governar não é afinal difícil. Basta cumprir promessas. Ninguém contrariar. O cozinheiro, o ladrão, a sua esposa e o amante dela. Os "best friends" também têm amigos. E os amigos dos amigos nossos impostos são.
Desde Guterres que não tínhamos um governo tão fofinho. As sondagens de popularidade conferem. Primeiro-ministro em alta e todos à altura dos seus pergaminhos. Deputados anti-Crato, ministros anti-Cristas que era ministra e nada tinha a ver com justiça, cujo mapa vai ser revisto. O judicial, que não está visto mas está dito. Pela nova titular da pasta, que abre assim a caixa de Pandora. Os autarcas não perdem pela demora: alguns ganham a esperança de receber o seu tribunal de volta.
E a semana da função pública, que deve voltar às 35 horas, medida que aumenta a produtividade mas não tem impacto no emprego. Para isso, há que decretar: novos funcionários só manetas. Ou trabalham com um braço atrás das costas, porque assim o que até hoje era feito por um passa amanhã a dar emprego a dois.
2. Nada contra quem desfaz. Muito menos a favor do muito que está a ser desfeito. Foram aqueles os feriados eliminados porque sim. Penhorar, de forma cega e indiscriminada, a habitação de quem já perdeu tudo era uma selvageria fiscal. E ninguém morria de amores pelo lastro do ministro Crato no sistema de ensino português.
Faz até sentido que um novo governo seja o contrário do ex-governo, se foi isso que prometeu em eleições - e António Costa, nisso, não enganou ninguém. Era até expectável um programa de governo em contracorrente, sendo o "anti" aquilo que verdadeiramente une os partidos desta nova maioria. Tudo isto é legítimo na vida política de um país, não houvesse um pequeno detalhe que, na hora da verdade, até La Palisse derruba.
Esse pequeno detalhe chama-se Portugal, que tem uma longa e grandiosa História, tão longa e tão grandiosa quanto curta é a memória e obtusa a adesão imediata a tantas facilidades. Noutras latitudes, a prática de generalizada de medidas populares também tem um nome: populismo. Aqui significa simplesmente fazer pela vida.
Neste governo e nesta maioria que o suporta, há um misto de vertigem reformista (na Educação), de saudosismo socialista (Segurança Social), de inexperiência acumulada com um bom-feitio bastante inconveniente (ministro das Finanças). E, como é por demais evidente, um primeiro-ministro que começou a governar para as próximas eleições logo no dia da tomada de posse.
E este é o momento em que o detalhe se torna um pormenor que faz uma enorme diferença. É a diferença entre quem governa a pensar mais em si do que no interesse nacional. A cada dia que passa, é este primeiro-ministro quem mais grita calado aquilo que todos temem desde o início - o PCP está tão comprometido com o governo do PS, como o próprio António Costa está comprometido com a candidatura presidencial de Maria de Belém.
Toda a gente tem António Costa numa consideração intelectual que é seguramente superior à daqueles políticos que viveram um erro e não aprendem com eles. Como ministro influente num governo de práticas e comportamentos voluntaristas, sabe perfeitamente quanto isso nos custou em défice de contas no Estado e de competitividade nas empresas.
Só pode esta louca sucessão de coisas agradáveis e populares ser, por conseguinte, interpretada à luz de quem está em campanha eleitoral. Esta legislatura simpática, que se desdobra em medidas sem opositores, é o próprio epitáfio de um governo tão fofinho, tão fofinho, que já tem os dias contados. Não se sabendo quantos dias são, está já Costa entregue à contagem de votos. E assim voltamos ao princípio.
Pegue na máquina de calcular, mas não faça todas as contas. Salário menos mínimo, impostos a menos, pensões a subir, contribuições patronais a descer, mais feriados para quem trabalha, menos horas de trabalho para quem serve a sociedade e é pago pelo Orçamento do Estado. Que vai ter de reforçar as despesas com pessoal, porque os cortes salariais vão ser restituídos. Restituir é o verbo da Carris, do Metro e dos STCP, que por acaso acumulam défices crónicos e alguém continuará a pagar.
Não bate certo, pois não? Nem aqui, nem na China, nem no Brasil, onde por acaso usam um aforismo popular que previne "quando a esmola é grande, o pobre desconfia". Aqui ficamos sempre todos mais pobres, cada vez que um governo evoca os pobres para justificar aquilo que faz.