Os portugueses complicaram, ou ajudaram, a geringonça?

As contas mudaram, e muito: basta a abstenção do BE e do PCP para que o PS tenha a maioria no Parlamento. Mas nem tudo parece ser fácil para que se crie um novo acordo de esquerda.

À primeira vista, António Costa tem razão na sua análise principal aos resultados eleitorais das legislativas: "Os portugueses gostaram da geringonça e desejam a continuidade da atual solução política."

Ainda faltam apurar quatro mandatos (dos círculos da Europa e da emigração no resto do mundo). Mas mesmo que esses quatro deputados fossem todos para o PS (o que é mais do que improvável), isso não ajudaria o primeiro-ministro a negociar uma alternativa à maioria que existiu desde 2015, com o BE, o PCP e o PEV. Porque mesmo os novos parceiros possíveis, apontados por António Costa - o PAN, que tem quatro deputados, e o Livre, que tem um -, não chegariam para uma maioria absoluta diferente.

Por isso, quer o PCP (que perdeu cinco deputados) quer o BE, que mantém os 19 que tinha, continuam a ser essenciais para o jogo de forças parlamentar na próxima legislatura. Com uma, subtil, diferença: ganharam mais margem de manobra para negociar com o PS. Agora, com pelo menos 106 deputados, o PS não precisa do voto favorável de comunistas e bloquistas. Se ambos os partidos se abstiverem, por exemplo na votação do Orçamento do Estado, o PS consegue aprovar a sua proposta porque tem mais deputados do que a oposição de direita (PSD, CDS, Iniciativa Liberal e Chega, juntos, têm, para já, 84 mandatos).

Essa será uma novidade importante. A negociação de uma abstenção é, porventura, mais fácil do que uma garantia de aprovação. Até porque há uma outra diferença importante em relação a 2015: o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, não impôs, como o fez o seu antecessor, Cavaco Silva, um acordo escrito que comprometa os partidos de esquerda para a legislatura.

Na noite eleitoral, essa parte ficou clara, mas apenas nas entrelinhas. António Costa defendeu o valor da "estabilidade" e garantiu ser sua intenção alcançar um compromisso longo com os partidos que fizeram a geringonça - alargando ao PAN e ao Livre essa proposta. Do lado dos atuais parceiros, a resposta foi diferente. Catarina Martins mostrou-se disponível para um acordo de legislatura - com condições políticas -, mas também para uma negociação anual com o PS. Jerónimo de Sousa não mostrou abertura para nenhuma dessas opções, afirmando que o PCP julgará, caso a caso, os méritos ou deméritos das propostas do governo.

Essa diferença foi salientada por António Costa, que manifestou alguma esperança de reverter a aparente indisponibilidade do PCP para um acordo político. Há, no entanto, uma realidade que o primeiro-ministro conhece: PCP e BE perderam, juntos, 150 mil votos. O PS ganhou mais de cem mil votos. Por isso, os efeitos da geringonça podem ser analisados de maneira diferente, em cada uma das sedes partidárias. Na Soeiro Pereira Gomes, a sede do PCP, há muito que existe uma crítica constante sobre os malefícios de um acordo deste tipo. E as quatro quebras eleitorais seguidas da CDU (sendo esta última de mais de cem mil votos e cinco mandatos) podem ditar uma cautela da direção quanto ao futuro.

Essa é a razão que dá liberdade a António Costa para negociar apenas com o Bloco - o que basta para a maioria absoluta - ou juntando o PAN e o Livre a esse acordo. Mas essa liberdade tem um reverso. António Costa não quererá fragilizar a direção do PCP, que muito elogiou durante a última campanha, nem lançar o partido (de que o seu pai foi sempre militante) numa guerra interna. E sabe, também, que a intransigência do PCP pode, por si só, ditar um afastamento do Bloco.

A geringonça tinha uma virtude curiosa (para quem dela não faz parte, pelo menos) que era a sua geometria exata. Era um Tetris rígido: os três partidos tinham de se entender, e só os três poderiam fazer uma maioria clara. Hoje, depois das eleições, essa geometria mudou. Com nove partidos no Parlamento, e uma maioria de esquerda ainda maior (138 deputados, para já, em 230), curiosamente, a geringonça ficou mais complexa, e difícil. Por muito que tenham gostado do resultado dos últimos quatro anos, os eleitores parecem querer, também, algo de novo, a partir de agora.

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