Um estrangeiro em Washington

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Na próxima segunda-feira vou juntar-me no salão nobre da Reitoria da Universidade de Lisboa a mais de duas dezenas de especialistas em questões americanas, na conferência organizada pelo professor Eduardo Paz Ferreira, com o provocador título - "O último ano de Trump?".

Julgo que me foi dado este ano esse privilégio porque tive a oportunidade de viver os últimos dois anos a política americana no mesmo fuso horário da Casa Branca e ver os EUA a partir de uma vida quotidiana, algum turismo e consumo dos media locais.

Ao preparar-me para o que vou dizer senti vontade de partilhar algumas impressões sobre o que um estrangeiro em Washington pode captar da política dos EUA.

Aqui o zapping desfaz qualquer bússola política. Perante qualquer acontecimento, o que ouço na CNN faz de Trump um vilão, na MSNBC um criminoso à solta e na Fox News um herói. Não me refiro à natural diversidade de linhas editoriais dos canais. É uma questão que chega ao modo como se constrói a factualidade da notícia. O caso paradigmático que vale por todos os que se repetem quotidianamente deu-se durante a crise da separação de crianças candidatas a asilo dos seus pais. Num canal havia a notícia de um pai que se suicidara após ter sido separado do seu filho. Trágica e desumana esta política de Trump. Noutro, uma história de tráfico de crianças em que falsos pais eram membros de gangues que traficavam crianças para os EUA e que tinham ligações a um assassínio recente de um jovem promissor numa cidade de fronteira. Humanitária e anti-crime, esta mesma política.

Eu não tenho apenas que escolher o ângulo sob o qual leio as notícias. Quando escolho um meio de comunicação escolho os factos em que vivo. A factualidade tornou-se uma matéria de fé. Um CNN-americano e um Fox-americano não vivem no mesmo mundo. Ponto final. Não há verdades sobre as quais se criam e discutem opiniões. Há apenas verdades em competição.

Os resultados eleitorais terão menos a ver com que segmentos do eleitorado que cada candidato vai conquistar do que com que segmentos do que já é o seu eleitorado vai evitar que não vote. E Trump está em campanha desde o dia em que foi eleito. Faz comícios regularmente. Até a sua mudança de residência da perdida Nova Iorque para a disputada Florida é calculada.

Este fenómeno de os políticos nacionais terem bases com segmentos identitários bem definidos que acreditam em verdades diferentes acompanha uma alteração estrutural na vida política, a que aqui chamam polarização, que pareceria normal a qualquer europeu habituado a partidos ideológicos, mas desconcerta as instituições americanas. Até um passado recente, a governabilidade assentava na existência de um grande centro político, constituído por republicanos pouco conservadores e democratas pouco progressistas, que construía as coligações que conduziam o país e que os Presidentes navegavam. Mas essa política está morta. Começou a morrer pelo menos com a Administração Clinton e foi-lhe desferido um golpe fatal com a eleição de Trump, ou seja, com a sua vitória, antes de qualquer outra, sobre o velho Partido Republicano.

Hoje não há quase nenhum republicano que se atreva a não seguir Trump, sob receio de ser cilindrado pela sua máquina política pessoal. Se há Mitt Romney para mostrar, não há nada que quebre o círculo do receio dos republicanos de serem abandonados por Trump. Diz-se que em surdina o criticam cada vez mais, que a intriga palaciana indica que pode tudo estoirar um dia. Mas, como se vê na gestão do processo da sua destituição, esse dia ainda não chegou.

Nos democratas, a situação é de total desorientação. Esta semana, a ver o último debate antes dos caucus do Iowa, quase adormecia. O momento mediático do debate foi o pós-sessão com a indignada Warren a acusar Sanders de lhe chamar mentirosa na televisão. Os democratas, cujos dois principais candidatos conseguem ser ainda mais velhos que Trump, oferecerão muito provavelmente como alternativa a este um outro presidente octogenário durante o mandato, seja ele o moderado Biden ou o socialista Sanders. Mas a estamina que abunda em Trump falta a Biden e o populismo reacionário de Trump bate o populismo de esquerda de Sanders por dez a zero.

Eu, europeu, encontro uma razão para um cidadão comum preferir os democratas aos republicanos em quaisquer circunstâncias - o sistema de saúde. Vivi aqui dois anos, não sou analfabeto e ainda não consegui perceber as regras do que me pagam, do que tenho que pagar, do que é elegível e não é elegível no meu seguro de saúde, que me dizem que é generoso. Pago centenas de dólares por consultas e procedimentos básicos e vejo na fatura apenas uma ínfima parte do custo "real" do procedimento. As classes médias vivem apavoradas com a ideia de ter uma doença. Mas Trump está bem aconselhado. Ninguém o ouve falar do tema há anos e assiste ao debate entre democratas sobre se deve ser criado um seguro público universal para os não cobertos ou um sistema público como o nosso e acena com o aumento de impostos que aterroriza a sua parte dos americanos.

Finalmente, o ponto por onde podia começar. Vivo há dois anos no Vaticano dos economistas. Entre o Banco Mundial e o FMI, que são dois edifícios um em frente ao outro, convenientemente ligados por uma passagem subterrânea (coisa simples, é uma garagem, não imaginem coisas de illuminati) há provavelmente a maior concentração por metro quadrado de massa cinzenta da economia ortodoxa do mundo. E os meus colegas são unânimes desde o dia em que cheguei quanto a que a política económica de Trump vai levar a uma recessão económica nacional, o conflito comercial com a China vai provocar uma recessão global mas - vá-se lá saber porquê - a expansão continua, os EUA vivem em pleno emprego e o mundo não entrou num novo inverno económico.

Tudo isto sem falar da lama que Trump pretende atirar sobre Biden. Num quadro assim, quem vai ganhar as presidenciais americanas?

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